A palavra multifacetada da personagem narradora no romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa - Eliane Bezerra da Silva

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – UFAL
FACULDADE DE LETRAS – FALE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA –
PPGLL
ÁREA: LITERATURA BRASILEIRA

ELIANE BEZERRA DA SILVA

A PALAVRA MULTIFACETADA DA PERSONAGEM
NARRADORA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
DE GUIMARÃES ROSA

MACEIÓ – AL
2002

ELIANE BEZERRA DA SILVA

A PALAVRA MULTIFACETADA DA PERSONAGEM
NARRADORA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
DE GUIMARÃES ROSA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras e Linguística como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Literatura Brasileira, da Universidade Federal de
Alagoas – UFAL.
Orientadora: Profª. Dr.ª Gláucia Vieira Machado.

MACEIÓ – AL
2002

Para minha mamãe Clotildes e meus filhos:
Rubiane, Rwizziane e Rubens Filho.

AGRADECIMENTOS
A Deus, a força constante em meu viver.
À minha família, pela cooperação ao longo do curso.
Ao CNPq, por haver financiado esta pesquisa.
Aos Coordenadores da Pós-graduação em Letras e Linguística da Ufal, Prof.º Dr.º José
Niraldo de Farias e Belmira Rita Magalhães
À Prof.ª Dr.ª Gláucia Vieira Machado, pela orientação bem direcionada que tornou
este trabalho menos árduo.
À Prof.ª Dr.ª Sheila Diab Maluf, pelo estímulo desde o ingresso no mestrado.
Aos meus colegas: Antônio de Pádua, Madileide Duarte e Márcio Ferreira; pela
interação sempre renovada.
À FUNESA (Fundação Universidade Estadual de Alagoas), ao NCA (Núcleo de
Cultura Avançada), ao CBC (Colégio Cenecista Nossa Senhora do Bom Conselho) e ao
PREMEN (Escola Estadual Senador Rui Palmeira) pelo incentivo sincero.
Aos meus alunos: a torcida positiva.

O sertão é do tamanho do mundo. (...) O resto
pequeno é vereda.
Me concebo. O senhor não é como eu?

Guimarães Rosa

RESUMO
Este trabalho realiza uma leitura da criação literária Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa, a partir da personagem protagonista e narradora. Analisamos as escolhas
que o autor efetivou para construir essa obra, por exemplo, a oralidade, a aproximação prosapoesia e a dramatização. Para a questão do conceito de estilo, a noção da personagem
ficcional e suas relações com a narrativa evidenciam um texto múltiplo diante da arte literária.
A questão do hibridismo como narrativa de fronteiras, a obra ecoa vozes da tradição oral em
relação as competências da análise oralística, como a referência ao tema dramático na obra. A
ambigüidade da personagem e sua relação com o sertão e com o outro revelam um
envolvimento com o real e o duplo que são elementos constantes confronto na narrativa
rosiana, por esse motivo ela será evidenciada como ponto intersemiótico entre personagens,
narrativa e narrador. O narrador corrobora uma posição entre narrador, o sujeito e o local que
evidencia a questão de hibridismo cultural que dialoga na narrativa rosiana com a amostragem
do sertão e seus personagens. O recurso humorístico que o traço rosiano destacou põe literária
a ferramenta maior – a palavra – como elemento simbólico para compreensão da leitura como
aspecto do hilário no texto, uma vez que o conceito de dramático aparece definido entre a
relação pessoa e persona. É por esse motivo que a personagem Riobaldo, em sua travessia de
palavras, parte da figura do jagunço para se colocar em outras representações como, por
exemplo, de aluno, de professor e de contador de histórias, como se traduzisse todos à sua
vivência e a seu lugar. A palavra surge no texto de Guimarães Rosa exibindo e esbanjando
suas possibilidade de desdobramentos, no entanto, difícil é olhar sua multiplicidade. Nesse
âmbito, a palavra se enche de transformações e significados, capaz de ecoar no interior de sua
própria força: "Existe é homem humano. Travessia” (GSV, 538). O escritor reconstrói a todo
o momento na narrativa uma forma de inovar, que aparece na forma da construção lingüística
ou na proposta de criação a construção da personagem Riobaldo, revelando suas múltiplas
oralidades.
Palavras – chave: Criação Literária; Personagem; Narradora.

RÉSUMÉ
Ce travail effectue une lecture de la création littéraire Grande Sertao: Veredas, par João
Guimarães Rosa, du caractère protagoniste et narrateur. Nous avons analysé les choix de
l'auteur fait efficace pour construire ce travail, par exemple, par voie orale, la prose et la
poésie approche dramatique. A la question du concept de style, la notion de personnage de
fiction et de sa relation avec le récit montrent un texte multiple sur l'art littéraire. La question
de l'hybridité comme récit des frontières, le travail fait écho à la voix de la tradition orale en
ce qui concerne les pouvoirs de l'analyse de oralística comme référence au thème dramatique
du travail. L'ambiguïté du personnage et sa relation avec l'arrière-pays et l'autre montre un
engagement réel et avec le double sont des éléments de confrontation constante dans le récit
de Rosa, par conséquent, il sera mis en évidence que le point intersémiotique entre les
personnages, la narration et le narrateur. Le narrateur confirme une position entre le narrateur,
le sujet et le site qui met en évidence la question de l'hybridité culturelle qui dialogue dans le
récit de Rosa avec l'arrière-pays d'échantillonnage et de ses personnages. La fonction
humoristique que le trait littéraire de Rosa a souligné met le plus grand outil - le mot - comme
un élément symbolique de la compréhension de la lecture comme aspect hilarant du texte,
puisque le concept dramatique apparaît réglée entre la personne et la relation persona. Il est
pour cette raison que le caractère Riobaldo dans sa traversée de mots, une partie de la figure
de bandit pour mettre dans d'autres représentations, par exemple, étudiant, professeur et
conteur, comment traduire toute son expérience et sa place. Le mot apparaît dans le texte
affichant Rosa et gaspillant leur chance à l'évolution, cependant, il est difficile de regarder
leur multiplicité. Dans ce contexte, le mot est plein de transformations et significations,
capables de faire écho dans sa propre force: « Il traverse humaine. » (GSV, 538) L'auteur
reconstitue tout le temps dans le récit d'une façon d'innover. qui apparaît sous la forme de
construction linguistique ou dans la création du projet de construction de caractère Riobaldo,
révélant ses multiples oralité.
Mots - clés: création littéraire; caractère; Narrateur.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 7

1. A PALAVRA ORALIZADA DA PERSONAGEM NARRADORA ........................... 12
1.1. A oralidade como recurso de estilo .......................................................................... 17
1.2 A leitura na (da) prosa poética ................................................................................. 20
1.2.1 Reflexão e leitura.................................................................................................. 24

2. A DUPLICIDADE DA PERSONAGEM NARRADORA. ........................................... 30
2.1. A personagem narradora híbrida ............................................................................ 34
2.2. A personagem narradora ambivalente ..................................................................... 38

3. A PALAVRA MULTIFACETADA DA PERSONAGEM PROTAGONISTA ............ .44
3.1. A palavra do professor e do aluno ......................................................................... .48
3.2. A palavra do contador de histórias ........................................................................ 52

CONCLUSÃO .................................................................................................................... 56

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 58

7

INTRODUÇÃO
A minha dissertação de mestrado é uma leitura do romance Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa. Para proceder a esta leitura, fez-se necessário um recorte diante da extensão da
obra, mais de 500 páginas, e de uma fortuna crítica ainda mais extensa. Escolhemos, inicialmente,
as categorias da personagem de ficção e a do narrador considerando a fusão de ambas na categoria
da personagem narradora, Riobaldo.
O título da dissertação A palavra multifacetada da personagem narradora em Grande
Sertão: Veredas pretende apontar as inúmeras vozes que compõem a narrativa e ressaltar o aspecto
oral da sua escrita. Além disso, pretende também mostrar o desdobramento dessa personagem em
diversos “outros”: jagunço, fazendeiro, professor, aluno e contador de histórias.
A complexidade dessa narrativa nos faz utilizar categorias de diferentes áreas de estudos e
autores: a personagem de ficção, a partir de textos de Antônio Cândido e Beth Brait; o narrador,
comentado a partir do clássico texto de Walter Benjamin; a oralidade, conceito estudado por Paul
Zumthor; a dramatização, tema de trabalho de Renata Pallotini; o conceito de hibridismo, em
diferentes abordagens, de Silviano Santiago, Haroldo de Campos e Nestor Gárcia Canclini; o
conceito de duplo, a partir do filósofo Clément Rosset e, finalmente, o humorismo, de Luigi
Pirandello.
Ao compor essa personagem que aparece de várias formas, nessa narrativa, Rosa registra a
modalidade oral/coloquial e a escrita/padrão dando a impressão de saber a importância da oralidade
para a literatura e para a sociedade. Ao traduzir a fala na escrita, ele dramatiza a voz do narrador
com recursos carregados de sentidos e obtém uma expressividade da voz sem vulgarizar a língua,
através de elaborado trabalho poético que respeita as duas modalidades discursivas.
A oralidade, apresentada também enquanto estilo do autor, exige a interferência da voz do
leitor assim como para haver o diálogo dentro da obra é necessária a presença da voz do outro. Na
criação do texto, pode-se dizer que o autor realiza um trabalho metalingüístico, pois ao mesmo
tempo em que ele inventa a personagem narradora que nos é apresentada como um contador de
histórias, ele também utiliza essa personagem para nos mostrar a dificuldade de ler e escrever.
“Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi”. (GSV, 432).
“Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão”. (GSV, 84).
“Eu queria decifrar as coisas que são importantes”. (GSV, 83).
“Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quanto bem não me entender, me
espere (GSV, 124).
“É que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido”. (GSV, 171).
“Sei que estou contando errado, pelos altos” (GSV, 82).
“Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar”. (GSV, 82).

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Para contar a história, Riobaldo ajusta sua narrativa à presença de uma outra personagem
que o acompanha atenta, fazendo anotações. Na fala do narrador, o enredo é construído, os conflitos
aparecem e revelam um coro de vozes díspares.
O confronto personagem narradora/personagem interlocutora une popular e culto através da
dramatização, o diálogo entre o jagunço e o forasteiro-doutor. O primeiro fala, enquanto o segundo
escreve.
Nessa junção de vozes aparece também o hibridismo cultural que resulta do liame entre
posições desiguais. A personagem narradora, através da apropriação e resistência, vai interagindo
com outras personagens que apresentam valores distintos dos valores dela. Nessas interações,
Riobaldo vai mudando sua maneira de ser e de pensar e ganha conhecimentos que o farão diferente
de outros jagunços. Ele passa a viver na margem, entre jagunço e fazendeiro.
“Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais”. (GSV, 161).
“O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho”. (GSV, 29).
“Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelémen”. (GSV, 171).
“As pessoas não estão sempre iguais (...) mas elas vão sempre mudando”. (GSV, 15).

As categorias hibridização e duplo dialogam com a categoria humor, que de forma intensa
pode prevalecer quando se trata da relação de uma linguagem experimental com a narrativa
literária. A linguagem experimental e o jogo de duplos se combinam para evidenciar o humorismo
tanto no caso da seleção quanto na combinação de recursos estilísticos.
Guimarães Rosa trama essa tessitura pelas contradições humorísticas. As vozes que dão tom
à narrativa sustentam a trajetória da personagem Riobaldo que produz seu pensamento em um coro
de vozes díspares. Pode-se dizer que a voz de Riobaldo é a voz de um humorista porque seu caráter
multifacetado aponta para uma atitude reflexiva. Essa parece ser a proposta de criação rosiana:
construir uma montagem de vozes díspares abrindo espaço para questionamentos.
“Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase baranqueiro. Para a velhice vou,
com ordem e trabalho. Sei de mim?” (GSV, 538).

No início da trama, o relato da personagem-narradora nos apresenta Riobaldo jagunço já
velho, fazendeiro: “Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como
quem diz: nas escorvas. Ahã”. (GSV, 08). Nesse sentido, a conversa sugere a reflexão e a
descoberta da “verdade” pela mediação de um outro. A obra praticamente não tem fim: é um eterno
retorno em que direito e avesso se encontram- “deus e o diabo no meio do redemoinho”.

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Em certo momento, a personagem narradora afirma por três vezes que a história terminou e
continua a narração: “Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”.
(GSV, 531). Na última página do romance, Riobaldo conversa com o compadre Quelémen: “Conto
o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras”. (GSV, 538).
Essa estratégia da narrativa nos remete ao anel de Moebius, figura topológica e elíptica que
nos impressiona por aproximar, em um processo dinâmico, o direito e o avesso, que na figura
deixaram de existir como tal. No grande sertão a fusão é uma marca do estilo rosiano que une pólos
opostos sem respeitar as fronteiras entre oralidade e escrita, personagem e narrador, linguagem
coloquial e padrão, presente e passado, jagunço e fazendeiro, eu e outro.
Na época moderna, o gênero narrativo passou por mudanças significativas quer no tocante
às formas estéticas, quer no que diz respeito aos conteúdos ideológicos. Nesse clima de liberdade de
expressão surgiu essa obra literária desmistificando verdades e quebrando tabus: a escrita pode ser
oralizada, a dramatização cabe no romance e a poesia na prosa.
A obra literária Grande Sertão: Veredas (1986) de João Guimarães Rosa apresenta a
oralidade escrita e a memória como registro da personagem, um monólogo - diálogo em que a
personagem dirige-se constantemente a uma personagem interlocutora testando

o canal de

comunicação.
Mesmo sabendo a existência de um memorial que reúne matérias sobre o autor, não
enveredamos pela crítica literária por considerar que é impossível dar conta da crítica e da leitura na
obra de Guimarães Rosa. Assim sendo, privilegiamos alguns trabalhos críticos entre outros os de
Lígia Chiappini (1997), Maria Lúcia Ramos (1972), Beth Brait (1998, 1999), Walnice Nogueira
Galvão (1972), Sônia Maria Viegas Andrade (1985) e Eduardo Farias Coutinho (1994, 1997).
Esta dissertação será composta por três capítulos, com a seguinte estrutura: no Capítulo 1,
analisaremos as escolhas que o autor efetivou para construir essa obra, por exemplo, a oralidade, a
aproximação prosa-poesia e a dramatização. Para a questão do conceito de estilo, basearemo-nos
nas teorias de Segre (1989); para a noção da personagem ficcional e suas relações com a narrativa,
apropriaremo-nos dos conceitos de Antônio Candido (1981) e Beth Brait (1999); para a questão do
hibridismo como narrativa de fronteiras, usaremos as ideias críticas de Silviano Santiago (1978);
para a análise da oralidade, utilizaremos as teorias de Paul Zumthor (1993) e para a concepção da
personagem dramática, os estudos de Renata Pallotine (1989).
Estudaremos a ambiguidade da personagem e sua relação com o sertão e com o outro, no
Capítulo 2. O real e o duplo, duas categorias estudas por Clémem Rosset (1996), são elementos de
constante confronto na narrativa rosiana, por esse motivo ela será evidenciada como ponto
intersemiótico entre personagens, enredo e narrador; e por falarmos em narrador, de Walter

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Benjamin (1985) usaremos a posição do narrador enquanto sujeito e local; e para o conceito de
hibridismo cultural, apropriaremo-nos dos conceitos de Haroldo de Campos (1984).
No Capítulo 3, apresentaremos o recurso humorístico que a riqueza literária desse texto
propiciou. A ferramenta para compreendermos a leitura como aspecto do hilário será baseado no
conceito do dramaturgo Luigi Pirandello (1998) que defende a relação entre pessoa e persona. Com
efeito, o autor medeia a narrativa pela via do humor, Riobaldo passa por várias experiências,
exercendo várias funções, atua como ator múltiplo em um universo em que o sistema só admitia a
personalidade jagunça. Na verdade, Riobaldo representa inúmeros papéis inseridos na categoria
sociocultural de sua própria existência. Em sua travessia, o personagem parte da figura do jagunço e
coloca-se em outras representações, ou seja, o aluno, o professor e o contador de histórias, como se
comportasse todos à sua vivência e a seu lugar.
É de fácil percepção na obra de Guimarães Rosa o trabalho que ele dá à palavra. Difícil,
entretanto, é olhar sua multiplicidade. A palavra nesse ponto se enche de transformações e
significados, capaz de ecoar no interior de sua própria força: "Existe é homem humano. Travessia"
(GSV, 538). Argumentaremos que o escritor reconstrói a todo o momento na narrativa, uma forma
de inovar, seja na forma da construção linguística seja na proposta de criação ressabiada, por
exemplo, na presença de Riobaldo e Diadorim.
À época moderna, o romance em estudo constitui-se um estilo singular, que valorizará o
novo e o criativo. Portanto, esse texto é um desafio ao leitor que, envolvido pelas possibilidades
criativas do Autor, é levado a pensar e a questionar a realidade em que vive, tentando (re)descobrir
enigmas e (re)encontrar respostas para várias inquietações. A força dessa narrativa nos leva, pois,
a vê-la enquanto professora como uma
sentido de ajudar o aluno
demasiadamente digerido.

contribuição para a prática pedagógica, sobretudo no

a sair do marasmo vicioso de engolir e vomitar aquilo que está

11

— Nonada.
Guimarães Rosa

12

CAPÍTULO I
1. A PALAVRA ORALIZADA DA PERSONAGEM NARRADORA
O romance Grande Sertão: Veredas inicia-se com um travessão que evidencia a oralidade
como ponto central dessa ficção. A palavra "Nonada" aponta peculiaridades da estilística rosiana.
A expressão é resultado da aglutinação de non + nada e remete-nos a um primeiro lugar na
existência lembrando o trecho bíblico referente à criação, que diz: "a terra era sem forma e vazia"
(Gênesis: 1:2). Era preciso dar forma a Terra e a palavra foi o veículo da invenção. Nessa
perspectiva, o poeta Haroldo de Campos, em seu livro Galáxias, atento às transformações da
palavra, apropria-se da estranheza que existe na poesia falada. "O povo é o inventalínguas na
malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso” (Campos, 1984, 17).
Na invenção com palavras, há aqueles que mastigam e trituram a língua. João Guimarães
Rosa trabalha e teima em busca da originalidade do vocábulo e da experimentação. Ele se apropria
de termos arcaicos e reinventa-os; acumplicia-se daqueles nunca ou raramente vistos. Esse aspecto
formal pode ser pensado como uma característica da Terceira Geração Moderna, da qual João
Guimarães Rosa faz parte, pois essa estética literária acentua a preocupação com a exploração das
potencialidades do discurso, como também o sentido estético do texto e expressa uma profunda
consciência do caráter de ficcionalidade da obra, de sua literariedade.
Segundo Eduardo Farias Coutinho (1994), Rosa revitalizou a língua a partir de premissas
formuladas por ele mesmo. Em cartas dirigidas a seu tradutor Gunter Lorenz, ele parece nos
mostrar isso quando diz que “o escritor é um alquimista” e “somente renovando a língua é que se
pode renovar o mundo”.
O trabalho artesanal com a língua não foi apenas um capricho nem tão pouco uma obsessão
pela forma. Para Rosa “é missão do escritor explorar a originalidade da expressão lingüística, de
modo a que ela possa recuperar seu poder, tornando-se novamente apta a atuar sobre os indivíduos”.
A unicidade do traço rosiano, no entender de Coutinho, é uma proposta estético-política de
caráter amplo que induz o leitor a pensar, a refletir e a se transformar de mero consumidor em um
participante ativo. Guimarães Rosa parece esmerilhar as palavras à procura do melhor efeito
poético para fazer do leitor um eterno perseguidor, isto é, um indivíduo construído sob o signo da
busca.
Na análise de Sônia Maria Viegas Andrade (1985), "sua narrativa está sempre a esbarrar no
limite, e é desse limite que o sentido poético se abisma no indizível, como se toda a narração tivesse

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por finalidade principal apontar algo que a ultrapassa". Nesse sentido, a palavra nonada aponta
para um aspecto estranho. Ela aparece como uma senha na primeira e na última página do romance
propondo uma simetria para a vida: uma espécie de espiral, assim como a existência, as pessoas, o
sertão. A observação da palavra nonada no início do romance também parece estabelecer relação
com a oralidade.
Segundo o crítico Paul Zumthor (1993: 17), havia uma oralidade anterior ao manuscrito:

Até hoje, nunca se tentou mesmo interpretar a oralidade da poesia medieval. Contentou-se
em observar sua existência. Pois, exatamente como um esqueleto fóssil, uma vez
reconhecido, deve ser separado dos sedimentos que o aprisionam, assim a poesia medieval
deve ser separada do meio tardio no qual a existência dos manuscritos lhe permitiu
subsistir: foi nesse meio que se constituiu o preconceito que fez da escritura a forma
dominante — hegemônica da linguagem.

Se houve preconceito frente à oralidade medieval, isso parece ter ocorrido graças aos
interesses de determinados grupos sociais que valorizaram manuscritos e designaram a necessidade
da linguagem e seu registro escrito.
É preciso entender que a palavra oralizada "é um fenômeno geral que convém considerar
bem aquém da materialidade de tal gênero particular: o fenômeno da voz humana, dimensão do
texto poético, determinada ao mesmo tempo no plano físico, psíquico e sociocultural (op.cit.,18)".
Para isso, ao compor suas personagens em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa dá à oralidade
dimensões que podem ser observadas em pelo menos dois planos da linguagem. O primeiro está no
projeto de criação do escritor, presente no estilo dele que aproveita a oralidade como elemento da
escrita; o segundo fundamenta-se na decomposição da palavra, ou seja, o escritor faz ecoar através
da escrita - essa como registro da dominação erudita - um dizer contraditório, no lugar da palavra
formalizada, ele se apropria da palavra que representa uma unidade diferenciadora- a oralidade.
A narração do ex-jagunço Riobaldo denuncia a relação do autor com outro meio social
distinto do qual fazia parte, pois, parece-nos que, nessa ilusão criada pelo autor, evidencia-se a
representação de um ser que conta a um outro a sua história de vida. A relação personagem
narradora/personagem interlocutora refere-se a duas histórias de vida bem diferentes. Segundo
Antônio Cândido (1981), "o grande arsenal do romancista é a memória, de onde extrai os elementos
de invenção, e isto confere acentuada ambigüidade às personagens, pois elas não correspondem a
pessoas vivas, mas nascem delas". É óbvio que há diferença entre um ser real e um ser fictício. O
ser fictício é sempre firmado no paradoxo, por isso, a personagem pode ter sido criada a partir de
uma dada realidade. É nesse sentido que, a nosso ver, pode-se pensar a inspiração de Rosa para sua
personagem Riobaldo.

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Um artigo da revista Nova Escola (09/2001) faz referência a uma viagem empreendida por
Rosa junto a uma comitiva de boiadeiros que transportavam 600 cabeças de bois. Doutor Rosa
infiltrara-se na tropa por curiosidade, precisava saber mais da vida dos sertanejos. No trajeto,
conhece o vaqueiro Manuelzão, cozinheiro e um bom contador de estórias. O escritor, inspirado
em Manuelzão, cria a

personagem

ficcional e nomeia um de

seus futuros romances de

"Manuelzão e Miguilim". É evidente o interesse de Rosa pela linguagem e os costumes do povo
simples do sertão mineiro, que serve de cenário para seus romances.
Para Lélia Parreira Duarte (2001), a leveza do humor, a instabilidade do “não já e ainda
não” e o fingimento são recursos que impossibilitam a formulação de conceitos definitivos na obra
rosiana. Pode-se falar, nesse sentido, que a obra expressa a incompletude do indivíduo dividido
entre pólos opostos como bem e mal, sertão e cidade, real e imaginário, entre outros extremos.
Segundo Duarte (op. cit.,100):

Os textos rosianos refletem, por isso, de diferentes formas, uma tensão permanente e
irresolvível, numa perspectiva que vê o ser humano incompletamente dividido entre pólos
opostos, entre cujas extremidades equilibra-se instavelmente, tornando assim possível a
criação da terceira margem, do “não já e ainda não”, com a sugestão do entre lugar e o
recurso do humor.

Para Beth Brait (1998), a narrativa Grande Sertão: Veredas é contada na voz de uma
personagem semiletrada. A personagem interlocutora aparece de forma implícita, ou seja, um
homem experiente e culto que pergunta e comenta, fazendo interagir, dessa forma, dois mundos
distintos.
Lígia Chiappini (1998) nos diz que Riobaldo busca respostas dignas de um homem instruído
que não acredita em superstição. Na sua fala, percebe-se a insapiência da personagem culta diante
dos mistérios da vida sertaneja quando repetidas vezes ele diz "o senhor sabe" (GSV, 11); como se
dissesse que o outro desconhecia também a realidade sertaneja. Riobaldo tem na fala seu tesouro.
Desconhecedor das normas que comandam a linguagem erudita, ele reproduz, através da oralidade,
uma profusão de palavra: novas palavras que se reverberam no comando da narrativa rosiana. Maria
Luisa Ramos (1972) afirma que "é comum as pessoas de primária instrução estilizarem a língua
para impressionar o outro". A fala da personagem Riobaldo, arbitrária às regras, é de uma riqueza
extraordinária, pois quando conta, entremeia fatos e estórias para ilustrar o que diz.
João Correia Filho (2001), em artigo publicado na revista Cult, entrevista Seu Zito, um
companheiro de viagem de Guimarães Rosa que faz referência a algumas curiosidades das viagens
empreendidas ao seu lado. Ele afirma que, durante a viagem, Doutor Rosa fazia questão de ser

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chamado de vaqueiro Rosa. Ele nos revela a faceta de Rosa como atento ouvinte e curioso quando
diz que, numa das viagens a Fortaleza, o autor ouvira a história de Riobaldo de um cearense.
No depoimento de seu Zito, fica evidente a questão da tradição oral como intertexto, isto é,
a presença de textos da oralidade na escrita. Observe-se que a personagem Riobaldo na história
contada à Rosa vivia no seu contexto oral, pois existia enquanto ato de fala. No habitat textual, o
escritor utiliza a tinta e o papel como instrumentos de criação. Ao ser transportada para o mundo
textual, a personagem ganhou outra forma. Para Beth Brait (1999:18), “o objeto de estudo será o
texto literário, concebido como o espaço em que, por meio de palavras, o autor vai erigindo os seres
que compõem o universo da ficção." A personagem Riobaldo, ambientada nesse contexto, pode
representar um ser humano.
A realidade ficcional pode ser a representação de uma dada realidade empírica, isso implica
que o autor efetivou a escolha de uma variação lingüística que definiu seu estilo. Assim sendo, a
linguagem universal que Rosa comanda através de suas invenções, recebeu influência da linguagem
regionalista falada no interior de Minas Gerais. A seleção foi resultante do diálogo entre o autor e a
sociedade que os relacionavam. Brait (op.cit) comenta que o Doutor João Guimarães Rosa viveu no
interior de Minas Gerais, exerceu medicina durante muitos anos, atendeu nas residências e
constantemente tinha acesso às estórias dos moradores daquela região. Quando criança, ouvira
estórias na loja de seu pai e em casa, pois seu pai pagava as velhas contadoras para entreter o filho
que apreciava aquelas estórias.
Parece-nos que a representação da situação dialógica vivida entre o contador de estórias e o
ouvinte é mais um fato verossímil retirado da memória do escritor. O ato de narrar oralmente
implica improvisação, apreende subjetividade, por isso se diz que o texto é fruto de suas invenções.
Para Zumthor (1993: 222), a linguagem poética medieval comporta sempre um aspecto
performático, pelo qual a mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida no ato da
fala. A obra performática é representada pela troca, pelo diálogo:

Desde que exceda alguns instantes, a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela
requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis
porque o verbo poético exige o calor do contato; e os dons de sociabilidade, a afetividade
que se espalha, o talento de fazer rir ou de emocionar e até um certo pitoresco pessoal
foram parte de uma arte e firmaram mais de uma reputação.

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Na primeira página do romance, a fala de Riobaldo indica a presença de seu interlocutor
"Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja” ( GSV, 01) 1; há referência a
esse outro ao longo de toda a narrativa, apesar de não haver registro de sua fala, há um monólogo
levado para o texto de ficção que sugere um diálogo, isto é, respostas e perguntas
Senhor o que acha? ( GSV, 06);
(...) eu sei que o senhor vai discutir. (GSV, 06);
O senhor concebe? ( GSV, 14);
O Senhor me dirá: (GSV,. 14);
O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário? (GSV,. 538).

A personagem2 narradora apropria-se de um discurso conativo, onde o apelo à interlocução
mantém o ritmo da narrativa. Nesse ato, a oralidade intercorta, através da fala da personagem, o
desejo de ser ouvido e não ser interrompido no seu dizer. Segundo Zumthor, "a

função da

linguagem que Malinowski denominou “fática”: jogo de aproximação e de apelo, de provocação
do Outro, de pergunta, em si indiferente à produção de um sentido. ( op. cit., 222)". Percebe-se
nessa citação que essa função faz parte da ação oral-auditiva que envolve emissor e receptor, isto é,
a comunicação oral. A personagem narradora mantém contato com a personagem interlocutora,
testando o canal de comunicação com frases do tipo:

Mire veja (GSV, 52);
O senhor...Mire veja: (GSV, 15);
Pois, mire e veja (GSV, 70);
Mas, mire e veja (GSV, 143);
O senhor veja: (GSV, 12).
Olhe o senhor: ( GSV, 15);
Mas, o senhor entenda: (GSV, 02);
O senhor vê: (GSV, 03).

Riobaldo comenta as reações do seu interlocutor quando mostra seu espanto diante dele. O
apelo aos gestos e reações da personagem interlocutora afirma o dito que Riobaldo sugere que o
outro não faz parte do meio em que ele vive, pois, ela se espanta com o modo de ser do contador
de estória.

O senhor ri certas risadas (GSV, 01);
O senhor tapa os ouvidos (GSV,18).
O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos...
( GSV, 517 )

1

Para evitar repetições, usaremos nas citações da obra Grande Sertão: Veredas apenas a abreviatura da obra e o número
da página referente a citação.
2
A opção pelo artigo definido feminino diante do termo personagem deve-se a interpretação, Riobaldo é visto como a
representação ficcional de uma pessoa.

17
Essas observações do narrador evidenciam a força da oralidade. O aspecto interventor da
personagem aparece na oralidade de Riobaldo, pois ele comanda a narrativa, traduz olhares, gestos
e sons como se fossem corpóreos à sua própria existência.

1.1 - ORALIDADE COMO RECURSO DE ESTILO
A oralidade, enquanto estilo do autor, exige a interferência da voz do leitor, assim como a
representação do diálogo dentro da obra precisa da segunda voz do discurso. Observa-se como a
personagem - narradora dirige-se à interlocutora buscando ouvir sua versão sobre os fatos contados:

O senhor aprova? ( GSV,03);
Senhor o que acha? (...) eu sei que o senhor vai discutir.(GSV, 06);
O senhor me dirá: (GSV, 14);
Senhor caça? (GSV, 18);
(...) o senhor vai. (GSV, 18);
O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem moita, um pé de parede pra ele se retrasar?
(GSV, 41);
O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário? (GSV, 538).

Riobaldo precisa ouvir o outro, por isso questiona-o em busca de sua participação. Segundo
Chiappini (1998), Riobaldo narra para entender a si mesmo, seu destino e sua vida. A personagem
dirige-se ao seu interlocutor buscando a aprovação do que é narrado.
Guimarães Rosa realiza essa criação literária a partir da escolha do protagonista ex-jagunço
e de um falar do contador de histórias que narra casos e fatos em um jorro verbal sem nenhum
tipo de barreira lingüística. Os recursos usados pela personagem narradora são comuns à oralidade,
como a presença do não-dito que se subentende em expressões que correspondem às repetições, aos
fatos, às situações cotidianas

que se encontram entremeadas

em um discurso sertanejo

caracterizado por expressões do vulgo e interjeições.
— " Dou duelo!... — Ei, tibes..." Só o quanto de se quebrar o galho e rasgar roupagem.
Um judas correu errado, do lado onde o Jiribibe estava: triste daquele. - “Ouh!” — foi o
que ele fez de contrição perfeita. Outro levantou o corpo um pouco mais. — "Tu! Tu
pensa que tem Deus-e-meio?!" — Zé Bebelo disse, depois de derrubar o tal, com um tiro
de nhambu, baixo. Outro fugia esperto. — "Tem talentos nos pés..." Os que enviei,
deixei de numerar por causa de caridade. Ai deles. Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que
é um alegre mal, feito numa caçada? Descansar? Quem disse, não foi ouvido. — "Vou lá
deixar essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha gente! Vamos neles! (GSV,
80)" (grifos meus).

A linguagem oralizada de Rosa expõe as sensações do narrador que se compraz com a fala e
se acumplicia dessa forma. Por isso, a pontuação é um recurso lingüístico essencial para impor as

18
transformações da oralidade. O discurso direto é reproduzido no parágrafo acompanhado por
travessão e anunciado pelos verbos de elocução seguidos pelos dois pontos. A narrativa rosiana,
como já foi dito, é linguagem escrita oralizada. Assim, a linguagem falada e a linguagem escrita
estão representadas uniformemente, como se resultassem de mesma dicção. A adaptação da fala
para a forma culta é um procedimento comum à literatura, pois muitos autores tentaram representar
a oralidade em suas obras literárias.
Evidentemente, Rosa sabia a importância da oralidade para a literatura e para a sociedade. E
fez a sua escolha. Reproduzir a fala na escrita é dramatizar a voz com recursos carregados de
sentidos. Essa expressividade da fala foi conseguida sem vulgarizar a língua. Por isso, o respeito às
duas modalidades discursivas faz parte do processo de conscientização da linguagem. Uma vertente
importante dos estudos literários entende a literatura como manifestação da linguagem da cultura
humana e não mais como um veículo de transmissão da linguagem culta.
Há visivelmente na narrativa afirmações que expressam a introspecção analítica da
personagem narradora:

Às vezes eu penso: ( GSV, 46);
O que mais penso, testo e explico: (GSV, 08);
Para pensar longe, sou cão mestre. (GSV, 08);
O senhor imaginalmente percebe. (GSV, 37);
O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu. ( GSV, 82);
Eu quero que o senhor repense as minhas tolas palavras. ( GSV, 146);
(...) o senhor reflita. (GSV, 103);
O senhor pense outra vez, repense o bem pensado. (GSV, 92);
Mas eu estava pensando redobrado. ( GSV, 418);
(...) o senhor está pensando alto, em quantidades. (GSV, 444).

Chiappini (op. cit) comenta a natureza do discurso da personagem dizendo que ela
aconselha, pergunta, dá ordens, faz pedidos numa troca, ora conferindo sabedoria a ela ora a
personagem interlocutora. O respeito à fala do outro está presente quando a personagem Riobaldo
diz:

Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. ( GSV, 09);
Me concebo. O senhor não é como eu? (GSV,03).

Observa-se que a personagem narradora Riobaldo

ora cita seus valores ora os da

personagem interlocutora. Ela apropria-se da fala de outros para confirmar seus valores, enquanto
reconhece os valores da personagem interlocutora.

E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. (GSV, 29);
Aprecio uns assim feito o senhor - homem sagaz solerte. (GSV, 200);

19
Ah, o que eu prezava de ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para se estudar
dessas matérias... (GSV, 202);
Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que eles pelo sincero me
prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo,
corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo
melhor. (GSV, 533);
Só aí, digo, foi que ele ficou gostando de mim. (...) me fez firmes elogios (GSV, 110).
(grifos meus).

No início do romance, o relato recuperado na memória é pensado como experiência que se
vai fazendo ao longo do tempo, que se constrói pouco a pouco, conforme o homem vai descobrindo
e pensando o mundo, procura a compreensão dos fatos que determinam os rumos de sua vida.
Pode-se distinguir, desse modo, dois recursos temporais que fazem correlação na narrativa:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando
difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora,
feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos estou de range rede. E me inventei
neste gosto, de especular idéia. ( GSV,03) (grifos meus);
Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. GSV,08);
(...) cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. GSV, 82).
(grifos meus).

Ao representar uma quebra temporal na narrativa, o escritor atenta propriamente para seu
elemento maior no romance: a palavra oralizada. É dela que nascem as lembranças e rememorações,
cuja interferência se estabelece na necessidade de contar uma história, um “causo”.
A personagem narradora passa de um “causo” para outro sem nenhuma preparação ou aviso
ao leitor. Para contar o que o outro disse, ela usa sempre o discurso direto. A narrativa recupera a
todo o momento a imitação da fala do outro, presente na comunicação oral. As primeiras páginas
desse romance mostram seis casos para ilustrar a fala do narrador: o primeiro, o ganancioso Jisé
Simpilício. Diziam na cidade que ele tinha em casa um capeta com intenção de conseguir riquezas;
o segundo, a história de Aleixo, o homem que matou um velhinho sem motivo aparente; o terceiro,
a história do filho em que os pais sentiam prazer em corrigi-lo; a maldade do delegado Jazevedão
é o quarto; o quinto, o arrependido jagunço Joé Cazuzo; e o sexto, a crueldade do Firmino. No
momento da performance, isto é,

"a ação complexa pela qual uma mensagem poética é

simultaneamente transmitida e percebida", a oralidade envolve poesia e memória. De um lado, a
memória é fonte inesgotável de conhecimentos que enriquece o ouvinte com saberes do passado.
Por outro lado, a voz poética é memória e tanto pode ser um conjunto de textos poéticos como a
atividade que os produziu: o corpo, o gesto, os meios. Para Zumthor (op. cit.,140):

Foi no livro de minha memória, diz o poeta, que encontrei escritas as palavras com as quais
vou compor esta obra. Portanto, a memória não é livro senão em figura: ei-la designada

20
palavra viva, da qual emana a coerência de uma escritura; a coerência de uma inscrição do
homem e de sua história, pessoal e coletiva, na realidade do destino. Esse interesse pela
memória, continuamente manifestado pelos doutos, deve-se ao imenso papel
desempenhado nessa cultura pelas transmissões orais — trazidas pela voz, da qual a poesia
constitui o lugar eminente.

Os recortes constantes da narrativa indicam a oralidade do romance que se mostra facetado
em diversas histórias e se apresenta amarrado nos sertões de Riobaldo e Diadorim. Nesse caso, as
personagens se relacionam entre si permitindo uma série de atos criativos. Em destaque

a

acentuação das palavras como elementos expressivos:

ruim ( GSV,11); rúim ruím (GSV,192);
He, he (GSV, 56); Hê,hê...? ( GSV, 59).

Gláucia Vieira Machado e Ondina Pereira (2001) comentam a criação literária Grande
Sertão: Veredas a partir do experimentalismo poético. Para elas, esse texto é um lugar possível em
que o autor traduz a vocalidade para a letra sem reduzí-la a frieza do papel. Na leitura em voz alta,
ouve-se o som e as divagações comuns á oralidade. Algumas expressões do Grande Sertão são
enumeradas para ilustrar essa transposição:
No Grande Sertão, encontramos: “Coisas que vi,vi,vi — ôi...” (p.54); “ A que, até,
cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. He, he ( p.56) Hê, hê?... ” ( p.59);
“ Co-ah!” ( p.60); “ E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, hã, hã (p.61); “ Ahoh-ah”(p.74) “Aoh, uê, alguém, irmão?” (p.91); “Eh, eh, ô, O Siruiz já morreu ” (p.136);
“Eh, eh, nós... ” ( pp.141 e 144); “br’r’r’úuu”
( p.396). Sons como arre , apre, ah, ih,
sape, ei, são abundantes em toda narrativa, fornecendo ao relato escrito o ritmo violento do
atual e do oral: “Eh, do ar! Eh, dunga!” ( p.552).

1.2 - A LEITURA DA (NA) PROSA POÉTICA ROSIANA

A estilística moderna surgiu a partir do século XVIII e, segundo Segre (1989), a valorização
do estilo é o ponto mais alto da elaboração artística. Essa valorização, entretanto, só foi alcançada
quando surgiu a noção de sociabilidade, com a conseqüente relação de dualidade entre o autor e a
comunidade a que pertence. O estilo de cada autor se remete a relação entre o autor e o meio a que
ele está relacionado. Daí, é possível entender a luta empreendida que o condiciona e deixa marcas
no texto .
Essas marcas são detectadas pela presença de fatos verossímeis da vida do escritor. Sabe-se
que Rosa mantinha correspondência com seu tradutor para o alemão, Curt Meyer-Clason. Em uma
dessas cartas, o escritor diz que "a língua é um instrumento fino, hábil, agudo, abarcável,

21
penetrável, sempre perfectível, que está a serviço do homem, de Deus e da transcendência. Dessa
forma, comprova-se que seu conhecimento sobre linguagem permite um desdobramento da palavra,
dando-lhe um aspecto universal. Provavelmente, as marcas citadas acima dão ao escritor uma
peculiar característica, senão única, de sua profusão de palavras.
O estilo rosiano é um trabalho artesanal. Ele revela um trato com as palavras lapidando-as e
propondo inovações lingüísticas. Para Ramos (1972), esse romance apresenta-se como um só
poema. A personagem narradora seleciona palavras para exibir-se diante da

interlocutora, o

forasteiro doutor. A revolução lingüística operada por Rosa em sua prosa reage às regras que
padronizam o ato de escrever. A nosso ver, esses recursos são comuns à poesia. Notam-se, ao longo
da narrativa, inúmeros aspectos poéticos: o ritmo, as metáforas, as imagens, a aliteração e a
assonância:

Mas nós passávamos, feito flexa, feito faca, feito fogo. (GSV, 262);
“Eu também não sei”. Sereno, sereno. Eu vi o rio. (GSV, 89);
(..) desde que ele brabasse, desde que ele puxasse. (GSV, 68).

A repetição também é um recurso poético que o autor utiliza nesse discurso:

A contra mim tudo contra. (GSV, 106);
(...) é aí que a pergunta se pergunta. (GSV, 92);
Capaz de capaz! (GSV, 105);
Fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. (GSV, 86);
Mulher assim de ser: que nem braçada de cana - da bica para os cochos, dos cochos para os
tachos. (GSV, 121);
(…) mesmo, mesmo, assim mesmo, (GSV, 68).

Ainda usa artifício expressivos como:

As roupas (...) não fuxicavam, ( GSV, 87);
(...) queria novidade quieta para meus olhos.(GSV, 85);
(...) por causa de uns metros de água mansinha.(GSV, 85);
Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. (GSV, 82);
Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (GSV, 82);
Eu disse um grito. (GSV, 88).

O campo dos recursos morfo-sintáticos é vasto. Ele maneja as palavras como lhe convém,
fazendo justaposições, aglutinações; para conseguir a sugestividade das frases recria e inventa
palavras. Observa-se o estranhamento causado por algumas palavras que exigem reflexão do leitor.
Rosa forja sua própria língua, misturando verbetes de vários idiomas, neologismos, estrangeirismos
e arcaísmos: deusdar, malmolência, gambetou, clavinote, truxe, évem, tirázios,

pauteação,

sassafrás, quentar, dúbito, prascóvio, dejaniras, lusfús, brisbisa, felém, intrim, drongo, cultilquê,

22
goga, agançagem, reiúno, rafaméia, bispei, tlique, cainça, blilbloquê, rinite, malamal, caçanje,
flosofou,, secivre, prospeito, drede, dosno, socolor, machacá, queleléia, upou, matlotagem, triol,
nagã, sebaceiros, dável, adaz, estripitriz, malmal,nonde, molmo, deletrear, trovoou mazelar, abaeté,
chusmote, chumbeiros, lontão, beurguéias, uturje, respraz, beobobo, toesas, ases, capatazia, drustes,
sezonático, malacafa, bibra, arpejo, mezinheora, entre outros termos.
Para Chiappini (1997), a temática da arte de narrar, recorrente nessa obra, consiste em
rememorar fatos, produzir conhecimentos, saber interpretar e ouvir. Tudo isso corresponde a ser
bom leitor, pois ao ouvinte ou ao leitor cabe atuar, ora completando, ora antecipando fatos. Por
isso, na referida obra , o autor espalha pistas sobre o desfecho.
Na narração de Riobaldo está implícito o sentimento de amor a vida, pois em sua fala ele se
constrói, isto é, ele fabrica a realidade narrando-a. Na palavra, Riobaldo se revela descobrindo a
força da narração.
Saber ler implica em desvendar mistérios, compreender mundos. Riobaldo efetivou
inúmeras leituras:

Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia.(GSV, 65);
Vi que era um homem gentil. (GSV, 98);
Vi que a história da moça era falsa. (GSV, 52).

A escrita proposta por Rosa é um texto aberto, isto é, texto escrevível, como diz Roland
Barthes (1982, 35-36 ):
Os escreventes, por sua vez, são homens “transitivos”; eles colocam um fim (testemunhar,
explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um
fazer, ela não o constitui. Eis pois a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de
comunicação, de um veículo do ‘pensamento’.

Grande Sertão: Veredas é um texto aberto porque convida o leitor à prática, incita-o a
abandonar sua posição tranqüila e aventurar-se como produtor de outros textos. Para Santiago (op.
cit., 23), a aventura do leitor escritor é comparada a uma tradução global: "as palavras do outro têm
a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos, e a
escritura do texto segundo é em parte a história de uma experiência sensual com o signo
estrangeiro"
Para Ramos (op.cit.), o "texto aberto é aquele que pode ser interpretado de diversas
maneiras, implica em reinvenção, dá lugar à obra a fazer, ao projeto ou intenção de comunicação
sem perder a configuração". Fica evidente que texto aberto é aquele que exige do outro um ato
reflexivo diante de situações ambíguas, duvidosas ou incertas. A criação literária Grande Sertão:

23
Veredas surge como um desafio ao leitor. Atuante, o leitor busca significados e respostas para
digerir melhor o signo lingüístico desconhecido. Para decifrar o signo, o leitor deve dialogar com
Rosa e estar atento aos indícios que ele distribui ao longo da narrativa. Como diz Andrade (1985,
21):
(...) a narração desafia a verdade, e a exigência de ‘enfiar a idéia’ e ‘achar o rumozinho
forte das coisas’ depara com a incerteza frente a um possível encarnado no vivido e que,
entregue à força persuasiva da memória, faz do não dito, da contradição, da pergunta sem
resposta o seu domínio. (...) As palavras são suficientemente reflexivas para se espelharem
a si próprias e se exibirem pelo avesso.

Ângela Vaz Leão (1997, 26) revela que Rosa assumia seu discurso de forma lúdica que
impregna a narrativa, evidenciando o jogo de linguagem que se compraz no desafio ao leitor para
seduzi-lo e prendê-lo. Nesse âmbito, há uma reflexão sobre a obra literária que se apresenta como
uma leitura prazerosa, produtiva e útil.
O alto teor poético da obra rosiana, onde a expressão pessoal corre livre, forjando o seu
próprio código enquanto utiliza, resulta num discurso opaco, que às vezes chega a
desnortear o leitor. Porém, longe de ser apenas conseqüência, essa opacidade é assumida de
forma voluntária e lúdica por Guimarães Rosa, que, à maneira de uma esfinge, desafia o
leitor, não para devorá-lo, mas para melhor o seduzir e prender.

Riobaldo/Rosa, através de elementos “estranhos3”, estimula a leitura crítica quando
apresenta o nome da personagem Diadorim, uma vez que ele não indica gênero: descreve a
personagem com características femininas e nomeia-a Reinaldo, um nome masculino. Assim, o
leitor acompanhará a paixão de Riobaldo por seu amigo. "Era, era que eu gostava dele. Gostava
dele quando eu fechava os olhos. Um bem querer que vinha do ar de meu nariz e dos sonho de
minhas noites. (GSV,128)". O autor dialoga com o leitor ao longo da narrativa quando diz "o senhor
entenderá, agora ainda não me entende. (GSV,128)". Desse modo, ele sugere que serão revelados
outros fatos ao longo da narrativa e que para isso o leitor deve estar atento caso contrário não
compreenderá. A identidade de Diadorim só é revelada após sua morte: é uma mulher, a filha do
grande chefe Joca Ramiro, Diadorina. A sua transformação fora a maneira que encontrara para viver
ao lado do pai no meio jagunço, essa informação, entretanto, será mostrada gradativamente e
revelada já no final da narrativa.

Às vezes eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque
achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais jeito, mão
melhor. ( GSV, 25);
3

O termo estranho foi estudado por Sigmundo Freud no texto O Estranho. Para ele, nesse estudo estranho é algo
desconhecido que lembra algo familiar por isso que assusta ou promove medo.

24
Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. (GSV, 90)
Daquela mão, eu recebia certeza. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos,
quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos — logo
eu disse: “Diadorim...Diadorim!” — com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu
gostava dele, gostava, gostava. (GSV, 134);
O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e
quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. (GSV, 87);
Assim quando me veio vontade de urinar, e eu disse, ele determinou: "Há-te, vai ali atrás,
longe de mim, isso faz..." (GSV, 90).

No prefácio à obra completa de João Guimarães Rosa, Coutinho (1994) comentando sobre o
alquimista da palavra, faz referência à meta primeira de Rosa: o compromisso com o leitor de
revitalizar a linguagem até recobrar a poiesis para levar o leitor à reflexão. Violando a norma
gramatical à procura da melhor expressão, ele transforma a língua em instrumento de ação e as
palavras, em idéias. O leitor torna-se cúmplice do autor à procura do significado que melhor
expressa seus efeitos inusitados.

1.2.1 - REFLEXÃO E LEITURA
Essa leitura requer uma participação ativa e exige uma atitude de reflexão ou busca de
respostas. A leitura é um lugar sem fronteiras, sem limites. Entretanto não basta ensinar a ler, é
necessário fazer ler. Riobaldo buscou significados para sua vida lendo o mundo. Estas lições estão
implícitas na narrativa rosiana, pois ela induz o leitor a refletir sobre a questão da difícil arte que é a
escrita.
Zumthor (1993) diz que na Alemanha dos séculos XIII e XIV, havia “um lugar comum
introdutório que estimulava a ler ou cantar". Nesse lugar, o ouvinte-espectador exigia aprender algo
mais do que o que ele via. A recepção desse texto mostra que se precisa abrir um espaço para
refletir sobre a maneira como se lê um romance. Pode-se entender isso de duas formas: de um
lado,

sem um posicionamento crítico, ou seja, identifica-se com as personagens, passa-se a

enxergar, sentir e sofrer com elas; de outro lado, pode-se manter distância e voltar-lhes um olhar
crítico em busca de erros e acertos. Essa segunda maneira de ler é a que esse romance exige, pois
diante das lacunas refletimos em busca de respostas. Nesse sentido, o leitor deve dialogar com o
narrador, e, de certo modo, a personagem interlocutora pode ser também a representação do leitor.
"O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. (GSV, 270)".
Segundo Renata Pallottini ( 1989 ), cada pessoa deve passar de um papel a outro, e tomar
sucessivamente o lugar do acusado, dos acusadores, das testemunhas, dos juízes. Só dessa forma,

25
cada um pode se engajar no exercício da discussão e acabará por adquirir a noção prática da
dialética.
Na obra Grande Sertão:Veredas há múltiplas vozes, um coro de vozes díspares, como se
fosse um texto coletivo. No interior da narrativa do ex-jagunço, está João Guimarães Rosa com uma
escrita polifônica4. O escritor articula a linguagem colocando os desajustes da vida em evidência.
"Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de bugre” (GSV,14). Essa afirmação
parece-nos estranha, percebe-se o zelo religioso. Os brancos, portadores da palavra de Deus, são
mansos, puros, e os índios, por desconhecerem o milagre da salvação, são tidos como violentos,
perigosos. Já dizia o escrivão-mor da frota portuguesa, Pero Vaz de Caminha, que os índios foram
dóceis, ingênuos e receptivos à conversão religiosa. Confrontando essa assertiva com o testemunho
de Caminha, pode-se perceber que há uma inverdade nessa afirmativa. O leitor pode discordar
dessa voz que afirma algo duvidoso ou incerto.
Guimarães Rosa consegue unir ecos de situações que sugerem diálogos entre a personagem
protagonista e a interlocutora e/ou entre outros personagens no relato de Riobaldo. A reverberação
do eco é a voz do leitor. Assim, pode-se falar de dois momentos distintos: o primeiro trata-se da
representação dentro da obra quando se trava a comunicação entre as personagens; o segundo, dáse no momento da recepção, no ato solitário da leitura.
Essas situações que sugerem diálogos, que estão presente a todo o momento na obra em
estudo, podem servir com mais eficácia ao professor, quando explorada pela representação teatral.
Percebe-se o potencial dramático que envolve todo o discurso: a narrativa vai se construindo
através de vários diálogos, entremeados da exposição da dificuldade de narrar, das situações, dos
fatos e dos episódios.
“— Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo homem...” — ele no fim falou.
Sopesei meu coração, povoado enchido, se diz; me cri capaz de altos, para toda seriedade
certa proporcionado. E, aí desde aquela hora conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que
ele falasse, para mim virava sete vezes. (GSV, 123);
Aquilo era para se pegar espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: “— É formoso
próprio..." — ele me ensinou. “ — Vigia como são esses..." Eu olhava e me sossegava
mais. (...) "É aquele lá: lindo!” (...) “É preciso olhar para esses com um todo carinho...” —
o Reinaldo disse. Era. Mas o dito , assim, botava surpresa. E a macieza da voz, o bem —
querer sem propósito, o caprichado ser — e tudo num homem d’ armas, brabo bem jagunço
- Eu não entendia! ( GSV , 122)".

4

Segundo KOCH, a alteridade é encenada, isto é, incorporam-se ao texto vozes de enunciadores que representam
pontos de vista diversos.

26
Sabe-se que o texto teatral pode ser visto como a encenação de um contexto fictício
realizado no palco; neste sentido, a arte dramática revela a interioridade do ser-personagem que se
manifesta por meio da voz e dos gestos. Veja-se o que diz, nesse sentido, Pallotini (op. cit., 13):

Portanto, temos aqui o personagem, esse contorno de ser humano feito por um criador,
mais ou menos preenchido de detalhes, imitador de uma pessoa, que está destinado a
cumprir um papel na peça de teatro, dizendo, fazendo, agindo, mostrando-se por gestos,
atitudes, entonações, levando adiante a ação dramática que é a essência da obra teatral.…
Estes personagens, em geral interagindo dando e recebendo, falando e ouvindo, agindo e
sofrendo a ação (o que é, também, agir, do ponto de vista dramático e dialético),
influenciando e recebendo influências, serão tais por razões suas, de cada um, e também
por razões de cada um dos seus interlocutores.

Por outro lado, existem diferenças consideráveis entre esses dois gêneros literários: a
narrativa teatral consiste na representação, na fala, no diálogo ou no solilóquio encenado no espaço
teatral, cuja ação recai sobre a própria dramatização; a forma do romance é um tecido

de

palavras.
Segundo Zumthor (1993), a figura do interlocutor na obra sugere diálogo e é característica
da poesia medieval. A presença do outro suscita, no discurso, dois papéis distintos e a interação
resultante dessa prática diz respeito à função dramática. A função dramática foi o recurso usado por
Rosa para unir várias vozes na narrativa. Neste aspecto, a modalidade da obra em estudo sustenta o
romance cujas situações sugerem uma ação, um enredo, um tempo e um espaço. Na verdade, a
personagem conta sua história em primeira pessoa a um suposto confidente que escreve enquanto
ouve. Sabe-se de tudo que se passa através da fala do narrador. Ele relata a um ouvinte seu jeito
único e universal de comandar a fala.
O ponto de vista de terceiros transparece na narrativa. A fala de outras personagens é um
recurso utilizado pelo autor para quebrar a monotonia da narrativa e revelar o caráter plural da
existência humana. A personagem Riobaldo passa a palavra à personagem Jõe, que a partir de certo
ponto passa a narrar a história, diferindo da visão apresentada por Riobaldo/Jagunço. Assim, essa
personagem impõe um novo olhar às coisas, distinto de outros olhares ao longo da narrativa como
o do Compadre Quelémem e o de Zé Bebelo. Encontra-se na fala do jagunço Jõe Bixiguento:
—Uai?! Nós vive... (GSV, 191);
— Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio... (GSV, 192).

A posição de Riobaldo-Jagunço é marginal. Dentro da obra, em um contexto metafórico
menor, há um diálogo envolvendo essas duas vozes: a primeira voz, Riobaldo-jagunço que
representa um meio-termo. É filho de fazendeiro vivendo no jaguncismo aspirando tornar-se

27
fazendeiro; a segunda voz, a do Jagunço-Jõe. Riobaldo-Jõe-Bixiguento representa o discurso de um
homem conformado com tudo, enquanto, Riobaldo, a voz do homem questionador de sua
identidade e de suas relações. Riobaldo conta à Jõe suas inquietações e este responde contando uma
estória, fazendo Riobaldo compreender melhor.
Estas situações de diálogos e o alto potencial dramático contribuíram para que este romance
fosse adaptado para a televisão e possibilitaram a dramatização da obra Grande Sertão: Veredas
para o teatro. Ramos (1972) acrescenta que a plasticidade do pensamento da personagem-narradora
confere ao romance a feição cinematográfica e os cortes e cenas favoreceram certos quadros
sobrepostos.
A transformação do romance em imagem televisiva ou a teatralização do texto pode ser
aproveitada para a maior compreensão do contexto rosiano e

contribui ressignificando e

possibilitando maior convívio com o texto ficcional.
As novas tecnologias podem apresentar-se como ferramentas úteis, ou seja, necessárias
para enriquecer o estudo da obra em questão. O seriado 5 de Avancini trata da vivência dos fatos; a
gravação das imagens de atores é uma representação da história. A televisão existe enquanto
imagem sonora, plástica e visual. As palavras disputam espaços com os gestos, movimentos e trilha
sonora. A representação da palavra está atada à representação do objeto pela imagem sonora e
visual, havendo a imbricação da palavra-imagem. Portanto, o campo textual se funde ao campo
imagético, passando a existir em função do outro.
A nosso ver, a leitura dessa criação literária rosiana surge como um desafio ao leitor. Ao
longo da narrativa Grande Sertão: Veredas Rosa trava uma batalha em prol da reflexão.
O caráter duplo da narrativa desencadeado por Rosa é traço que justifica ser chamado ora de
alquimista da palavra ora revolucionário da linguagem. Essa luta do autor ressoa na leitura da obra
em questão, pois a linguagem repleta de estranhamento é benéfica ao leitor, pois inquieta para
buscar um sentido para o signo lingüístico. Ao indagar-se sobre o significado dos termos, o leitor
fica suspenso entre o sim e o não e conclui a leitura tentando digerir as palavras desconhecidas e as
situações ambíguas. Com mais de um caminho a seguir, o leitor percebe-se preso na infinitude
dessa obra. Como diz Coutinho (1997: 84), "Riobaldo é talvez o mais perfeito exemplo dessa
atitude - o leitor, para ele, é sempre um perseguidor, um indivíduo marcado pelo signo da busca,
imerso, como todos os seres, numa longa travessia, cujo sentido último jamais é alcançado". A
personagem Riobaldo, a nosso entender, é a representação de um leitor atuante que busca respostas
e nunca se dá por vencido.
5

O seriado apresentado pela rede Globo de televisão no ano de 1985 foi baseado na obra literária. Composto de 25
capítulos, teve início no dia 18 de Novembro, sob a direção de Walter Avancini.

28
Para o poeta Manuel Bandeira (1981, 40-41), a leitura dessa obra foi riquíssima. Bandeira
afirma que Rosa fez Riobaldo poeta, pois conseguiu "pôr o jagunço poeta inventando dentro da
linguagem habitual dele". Da leitura do poeta, resultou uma produção poética, poema intitulado
Grande Sertão: Veredas. Fica evidente, nesse poema, a surpresa do autor de “Vou-me embora pra
Pasárgada” ante às invenções de Rosa que estabelece uma denúncia diante da revelação à
personagem Diadorim como representação de uma mulher: "E o caso de Diadorim, seria mesmo
possível? (...) Mas eu tive a minha decepção quando descobriu que Diadorim era mulher (...) Como
você disfarçou bem. Nunca que maldei nada."
Diante desse depoimento, em poesia, pode-se dizer que a grandiosidade dessa criação
começa com as escolhas que o autor efetivou. Percebe-se na narrativa, a oralidade escrita, a questão
do preconceito lingüístico. Entretanto, as invenções de Rosa confirmam a intenção de
dialogar com o leitor para fazê-lo participar da narrativa, criando respostas para os espaços vazios,
pois os indícios aparecem como pistas que levam ao final. O leitor precisa desconfiar do que o autor
diz ou sugere. A obra Grande Sertão: Veredas oscila entre prosa e poesia, pois não conta
simplesmente uma história que deleita, diverte e ensina; mas se constitui como uma história que
exibe os artifícios de sua própria construção e, numa atitude performática, faz com que o leitor
testemunhe e, mais que isso, participe das dúvidas e hesitações de um relato que mostra os artifícios
de sua construção.

29

— Eu era assim, sou?
Guimarães Rosa

30

CAPÍTULO II
2. A DUPLICIDADE DA PERSONAGEM NARRADORA
Neste capítulo, dando continuidade à leitura da criação literária Grande Sertão: Veredas, de
João Guimarães Rosa, leva-se em consideração que essa narrativa pode ser vista a partir da
personagem - protagonista - narradora e de sua articulação com o sertão, espaço em que se
desenvolve a narrativa. Pode-se pensar em um eixo narrativo que vai de Riobaldo a um outro
multifacetado, e a chave para essa abordagem será o conceito de hibridismo cultural, que
possibilita, a nosso ver, uma correlação entre esses termos.
O hibridismo aparece nesse contexto em dois aspectos. De um lado, aparece hibridismo
cultural resultante de confrontos e posições desiguais, isto é, um modo de apropriação e resistência.
De outro lado, existe a montagem dessa narrativa que joga com elementos de confronto e acentuam
o aspecto híbrido.
Um artigo da revista Veja (09/2001) fez referência ao “Ódio à Diferença”. Sabe-se que é
antigo o costume de estranhamento entre os povos. Os orientais, especialmente os árabes, que
emigram para o Ocidente, enfrentam essa barreira, mas nunca foram tão visados (desde a
vestimenta até ao sotaque) como depois do dia 11 de setembro de 2001, nos EUA. Tanto
americanos quanto muçulmanos tiveram os seus direitos cassados pelo governo, a fiscalização em
extremo nos aeroportos causaram constrangimento; muitos temeram sair de suas casas com
depressão e medo da reação do outro, enquanto outros tentaram amedrontar os estrangeiros com
repressões ou até mesmo atingindo seus costumes. O mundo Árabe imagina que o Ocidente está
contra ele e vice e versa. Acontece mais uma fase de conflitos entre civilizações. Os conflitos
perderam a matriz ideológica e ganharam tons cultural e religioso de rivalidade entre Ocidente e
Oriente, entre Cristãos e Islâmicos.
As pessoas acham que são superiores por serem iguais a maioria da sociedade em que vivem
e por isso acham que os estranhos são inferiores, com isso geram o preconceito. Pessoas diferentes
da coletividade são desprezadas ao serem comparadas com a superioridade que supostamente essa
coletividade possui. Como nos diz a personagem Riobaldo:

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães...
(GSV, 01) ;
Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. (GSV, 09).

31
Mas esses preconceitos não são encontrados somente hoje em dia. Antigamente, gregos e
romanos travaram muitas guerras contra os bárbaros, e o preconceito era reforçado pela relação de
dominação que os vencedores exerciam sobre os vencidos. O povo judeu é o exemplo mais fiel do
preconceito tanto antigo como atual, sofrendo discriminação de cunho religioso e cultural. Ainda no
império Romano, enfrentou o racismo por causa de sua fidelidade às tradições e costumes. Durante
a II Guerra, surge um racismo mais elaborado, os alemães e os italianos sentem-se superiores em
relação aos judeus, esta raça foi vista como inferior e deveria ser exterminada da terra para evitar
misturas.
No Grande Sertão: Veredas, elementos de confronto são colocados no mesmo patamar, e
velhas estruturas harmônicas não são suficientes para acompanhar as mudanças sociais.

A

personagem Riobaldo com relação à mudança do tempo afirma: “Geração minha, verdadeira, ainda
não eram assim. Ah, vai vir tempo em que não se usa mais matar gente... (GSV,14)”. Percebe-se na
fala de Riobaldo que as mudanças acontecem na interação, o tempo mostra a evolução.
Segundo Santiago (1978), a relação colonizador/colonizado é marcada pela ignorância de
ambas as partes. Impor e/ou aceitar o logro são atitudes mesquinhas provindas do desconhecimento
das diversidades culturais. Para ele, o conceito de superioridade de uma raça sobre outra é vista sob
a ótica de um julgamento pré- concebido, pois, diante do branco, o negro foi visto como animal, da
mesma maneira que o desconhecimento da cultura indígena levou o europeu a tratar o índio como
um homem desprovido de cultura. Santiago (1978, 16) afirma:
Evitar o bilingüísmo significa evitar o pluralismo religioso e significa também impor o
poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um
só Deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira
Língua.

Pode-se concluir que durante a Renascença, a imposição da cultura européia aos índios, na
América, rompeu com o conceito de unidade e pureza clássica, surgindo o ser híbrido, isto é, um
lugar de fronteira.
Para Nestor García Canclini (1998), as manifestações que brotam de seus cruzamentos ou
em suas margens são chamadas de híbridos culturais. Esses cruzamentos são "(...) irreverentes
ocasiões de relativizar os fundamentalismos religiosos, políticos, nacionais, étnicos, artísticos que
absolutizam certos patrimônios e discriminam os demais" (op. cit., 307).

As mudanças de

pensamento e gosto explicam-se pelas interações constantes entre
culto e popular, novo e antigo. As hibridizações mostram que as culturas são de fronteiras, pois uma
cultura migra para outra. Nessa relação fronteiriça ganham-se comunicação e conhecimento.

32
Um exemplo de elementos de confronto em Grande Sertão: Veredas apresenta-se no título,
que indica um sentido ambíguo, já que dois pontos indicam que o espaço sertão contém as veredas,
ou seja, as veredas estão contidas no sertão. Nesse caso, o sertão é um "mundo misturado",
portanto híbrido.
É possível listar definições para o termo sertão, que ganha outros significados além de
espaço físico.

Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante?
O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca
planta - feito cabeleira sem cabeça. As exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor.
E fogo começou a entrar, com ar, nos pobres peitos da gente. (GSV, 37).

João Guimarães Rosa enfatiza aspectos do convívio do povo simples do sertão
transformando sua vivência em uma obra literária de fôlego. O espaço geográfico retratado pelo
autor, pode ser a região sertaneja, que se estende do Oeste ao Noroeste de Minas Gerais, passando
pelo Oeste da Bahia e Goiás até Piauí e Maranhão. Rosa, nessa criação, entrecruza realidade e
ficção para retratar as desigualdades sociais ocorridas nos sertões de Minas Gerais que apresenta a
mesma realidade de outros sertões. Por isso pode-se dizer que Rosa projetou o homem moderno no
sertão mineiro. Conhecedor da realidade do outro, no contexto, Rosa torna-se irmão de Riobaldo.
A partir das citações abaixo, pode-se considerar o termo sertão com mais de um sentido.
Elas confirmam a

ambigüidade do vocábulo que, de forma ampla, significa uma região

despovoada, terreno inútil, as chapadas; todavia, no sertão, há as veredas, lugar habitável, terreno
fértil, o provável espaço onde residiam os fazendeiros.

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os
campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia.
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? (GSV, 01);
A vereda recruza, reparte o plaino, de esguelha, de cabeceira-do-mato da Mata - Pequena
para a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas em curtas curvas, como no sucinto
caminhar qualquer cobra faz. E tudo. O resto, céu e campo (GSV, 484).

Um destes conceitos, aqui, ganha nova dimensão: "O grande-sertão é a forte arma"
(GSV,300). Metaforicamente, sertão pode significar o livro, o romance. A narrativa é vista como
sistema semiótico da diferença e o estilo oralizado pode ser visto como uma chave que abrirá a
suposta porta da compreensão do contexto.
Outro elemento de confronto percebe-se na intriga, que Rosa tece envolvendo personagens
que se encontram representados em sua luta pela sobrevivência. Ele escolhe para o contexto
histórico o tempo passado centralizado no final do século XIX, precisamente na República Velha,

33
numa sociedade agrária em que os fazendeiros tinham muito poder e seus empregados , os
jagunços, recebiam salários miseráveis para cumprir as ordens do patrão. O serviço pesado cabia
aos jagunços e as regalias aos fazendeiros. Essa é a causa de Riobaldo se aventurar à procura de
vida melhor: a personagem Riobaldo representa um jagunço filho de fazendeiro que deseja ser um
fazendeiro.
Silviano Santiago (1978), citando Barthes, refere-se a um tipo de texto literário constituído
por brechas - onde as vozes se entrecruzam e que necessita dos leitores o preenchimento dos
espaços vazios.
Nesse sentido, a narrativa Grande Sertão: Veredas é um texto repleto de vazios, pois o
autor deixa em aberto questões que possibilitam ao leitor aventurar-se na leitura como produtor de
outros textos, preenchendo durante a experiência de leitura essas lacunas deixadas pelo autor. A
escrita rosiana fala por si mesma, dialogando com as dificuldades do leitor e contribui para o
questionamento da realidade, e, consequentemente, para a formação do bom leitor. Duarte (2001,
99-100) afirma que:

(...) é permanente e irresolvível a tensão existente entre pólos opostos - seja entre o mundo
dos dominadores e o dos dominados, seja entre regiões geográficas como o mundo do
sertão e o da cidade, seja entre a simplicidade do sertanejo e a esperteza daquele mais
culturalmente desenvolvido ( ou vice - versa), seja entre real e imaginário, bem e mal, Deus
e diabo, mythos e logos, loucura e razão.

Para Duarte (op. cit.,), essa obra é tecida entre pólos opostos. A contradição é permanente e
irresolvível. Percebe-se, nesse recurso, o incentivo para o questionamento. Mesmo que o leitor não
encontre respostas definitivas, as tentativas aparecem como um exercício de leitura.
Outro bom exemplo de elementos aparece no paradoxo autor/personagem-narradora que
une popular e culto através da simulação da conversa entre um jagunço e um estrangeiro-doutor. O
primeiro fala, enquanto o segundo escreve. Essa foi a forma criativa que o autor escolheu para esse
tecido literário, a narrativa oralizada, que nos possibilita olhar a hibridização.
O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho ( GSV, 29);
Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais. ( GSV, 162).

Segundo Antônio Cândido (1981, 55 ), a criação literária é sempre paradoxal: "como pode
existir o que não existe?". A matéria que o escritor trabalha reveste-se de ficção, entretanto, essas
criações espelham a vida e conquistam a imortalidade: "avulta a personagem, que representa a
possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor" (Candido:1981, 54). No universo da
linguagem, reconhece-se que a realidade ficcional está relacionada com a realidade empírica,

34
entretanto,

Riobaldo/Rosa

constrói a narrativa baseando-se em um provável pacto que a

personagem narradora fizera com o diabo. A visão da personagem narradora, incerta do pacto,
mostra na sua conduta funesta que se trata de um pacto verossímil, porque Grande Sertão: Veredas
é um texto de "realismo mágico lançando atenas para um supermundo metafísico" ele diz: (op.
cit.77):

(...) o monológo dum homem rústico, cuja consciência serve de palco para os fatos que
relata... sem afinal ter certeza se o pacto ocorreu ou não. Mas o importante é que, mesmo
que não tenha ocorrido, o material vai sendo organizado de modo onimoso, que torna
naturais as coisas espantosas.

A personagem pode representar ou não o mundo real, os seres ficcionais ganham
independência da realidade projetada, pois passam a existir como habitantes de um mundo
diferente, com uma lógica própria. O leitor pode ler e decifrar os enigmas da personagem Riobaldo
ao tomar como realidade o que é apenas linguagem, porque o texto literário só existe enquanto
"papel pintado de tinta". Segundo Beth Brait (1999,12):

Voltamos, portanto, nosso olhar às formas inventadas pelo homem para representar, simular
e criar a chamada realidade. Nesse jogo, em que muitas vezes tomamos por realidade o que
é apenas linguagem, (e há quem afirme que a linguagem e a vida são a mesma coisa), a
personagem não encontra espaço na dicotomia ser reproduzido/ser inventado. Ela percorre
as dobras e o viés dessa relação e aí situa a sua existência.

Assim sendo, o romance consiste em fatos vividos pelas personagens. Não se pode separar
personagem e narrativa, pois a narrativa nada mais é que a vida, isto é, os problemas traçados pelo
autor para as respectivas personagens.

2.1 A PERSONAGEM NARRADORA HIBRIDA

Haroldo de Campos (1972, 295), em seu estudo sobre hibridização, apresenta alguns
indícios de hibridismo em Grande Sertão: Veredas:

(...) por suas constantes invenções vocabulares; por seus rasgos sintáticos inovadores; pelo
hibridismo léxico (que vai do arcaísmo ao neologismo e à montagem de palavras); pelo
confronto oximoresco de barbárie e refinamento (o Sertão metafísico, palco das andanças
ontológicas do Jagunço - Fausto, debatendo-se entre Deus e o Demo); pelos topos do
“amor proibido”, perverso (Diadorim, a mulher travestida de homem, que desperta no
protagonista Riobaldo, uma paixão que este não pode confessar).

35
Ele aponta o trabalho artesanal com a língua que envolve arcaísmos, neologismos e
estrangeirismos, mostra também a contradição da personagem no sentido metafísico, pois ela
representa um indivíduo que vive na margem, isto é, entre Deus e o diabo; outro indício seria a
proibida paixão, a mulher amada se esconde em trajes masculinos, que instaura dúvidas quanto a
sua masculinidade. Aparentemente, Riobaldo sente-se atraído por mulheres e ama o amigo. "Mas
ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! - nunca tive inclinação
pra aos vícios desencontrados (GSV,125)”.
Pode-se dizer que o elemento híbrido reina em Grande Sertão: Veredas. A personagem
narradora simboliza um jagunço qualquer que reside num recanto do sertão,

trata-se da

representação de um homem de cultura interiorana em oposição ao autor que é intelectual e
poliglota.

Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi
com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso
inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo me escutando com devoção assim - é que aos poucos vou indo aprendendo a contar
corrigido. (GSV, 171).

O autor descreve a personagem Riobaldo transitando espaços e tempos diferentes. Ela passa
a conviver com personagens e viver em ambientes distintos que

precisam adaptar-se

constantemente. Ela afirma também não ser a mesma, ser outra quando diz:

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. (GSV, 15);
Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutu-Branco - depois de ser Tatarana e
de ter sido o jagunço Riobaldo. (GSV, 481).

Como exemplos de desdobramentos da personagem, temos ainda marcas de sua interação
com o Compadre Quelemém; com Zé Bebelo; com o fazendeiro Ornelas; o jagunço Jõe e, por
último, a personagem interlocutora que apresenta valores distintos dos da personagem narradora.
Nessas interações, Riobaldo modifica sua maneira de ser, de pensar e ganha conhecimentos que a
farão diferente de outros jagunços.
Chiappini (1997) alega que o forasteiro, ao mesmo tempo, é a figuração do próprio
escritor que ouviu, anotou e reescreveu a história de Riobaldo para nós, baseando-se numa relação
de citações que sugerem que a personagem narradora diz o que deve ser escrito na caderneta ao
ouvinte-escritor. Ela retira esses exemplos da ficção rosiana e discute esse processo narrativo que
focaliza o jagunço letrado versus seu ouvinte com carta de doutor e a relação entre ambos.

36

O senhor aí escreva: vinte páginas... (GSV, 482);
O senhor escreva no caderno: sete páginas. (GSV, 441);
O senhor enche uma caderneta. (GSV, 527);
Por via disso mesmo resumo. No fim, o senhor me completa. ( GSV, 454);
(...) o senhor pode completar imaginando, o que não pode, para o senhor, é Ter sido vivido.
(GSV, 39).

Pode-se fazer uma analogia da personagem interlocutora a um homem curioso, sensível, um
pesquisador que aparece em determinada região para apurar fatos, fazer anotações e registrar
histórias. Nas respostas do velho fazendeiro Riobaldo e nas subentendidas perguntas do jovem
doutor, transparecem o encontro entre dois mundos: cidade grande, sua agitação e sua velocidade e
a realidade da pacata cidade interiorana e sua mesmice:

Ah, eu só queria era ter nascido em cidades feito o senhor, para poder ser instruído e
inteligente! E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecver de coisa nenhuma.
Esquecer, para mim, é quase igual a esquecer dinheiro. (GSV, 358 );
Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito
ladino, de instruída sensatez. (GSV, 432);
Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em
seu jipe resolve. (GSV, 85).

Neste âmbito, a experiência de leitura extrapola os fatos que permitem a experiência do
outro. A passagem de uma leitura subjetiva e particular é centrada numa aventura do ser humano de
todos os tempos e lugares. Diante dessa descoberta, a personagem interlocutora, o forasteiro,
presta-se a ouvir e anotar o relato, agindo como um estudioso ou leitor dessa obra literária. Nota-se
nessa relação aspectos que sugerem diferenças sociais.
Walter Benjamin (1985), em seu estudo sobre o narrador, aponta a I Guerra Mundial como
marco entre duas maneiras de transmissão de histórias. Ele comenta que os combatentes não
voltaram mais ricos em relatos boca a boca como era esperado, e sim pobres em comunicação
verbal. Entretanto, a experiência

que deveria ter sido

transmitida oralmente surge numa

enxurrada de livros sobre o assunto. O porquê do silêncio pode ser relacionado a uma profunda
mudança social. O homem, com o surgimento da imprensa, passa a interagir com a palavra
impressa e nas mediações ele vai modificar sua expressão, a tal ponto que no momento pósguerra a dramática experiência dos ex-combatentes passa a ser expressa no código escrito.
Para Benjamin (op. cit.), o narrador é o sujeito que tem experiência de vida a comunicar;
pode ser um forasteiro trazendo notícias de outras terras, de outros povos, ou mesmo um sujeito que
venceu na vida com seus próprios meios, sendo capaz de relatar suas experiências para os mais
jovens. Essa temática do narrador já motivou vários autores que se referem a esse tema. Benjamim
afirma que a arte de narrar está em extinção. É possível questionar esse ponto de vista, pois a

37
comunicação moderna se dá de diversas formas, percebe-se que os meios de comunicação
transmitem histórias que são divulgadas pelos interlocutores quer de forma oral, quer consignadas
em livros. O romance representa, portanto, a modernidade da tradição e está para a modernidade
assim como a oralidade para a tradição e os meios de comunicação para a atualidade. O nosso
século é bombardeado com imagens e sons. Os meios de comunicação de massa são veículos que
transmitem histórias, mutações e comportamentos.
Na época da I Guerra Mundial, aconteceram mudanças significativas no Brasil no que diz
respeito aos conhecimentos trazidos pelos imigrantes e aos saberes do passado, assim sendo, a
experiência passou via oralidade de pessoa para pessoa.
Essa representação abre espaço para reflexão sobre a troca de conhecimento e a riqueza
cultural. Na fala da personagem Riobaldo pode-se perceber contentamento e satisfação no convívio
com os estrangeiros, com outras culturas, apesar de estranhar a fala diferente do outro que, em se
ser mostra sua origem, sua procedência. Riobaldo diz:

Toda a vida gostei demais de estrangeiro. (GSV, 97);
Só o que me invocava era a linguagem garganteada que falavam uns com uns, a aravia.
(GSV, 96).

A figura do estrangeiro aparece no texto rosiano de três formas: primeiro, na representação
da personagem interlocutora, quando apresenta o forasteiro que se mostra tanto autor quanto
leitor; segundo, no jaguncismo, Riobaldo é o diferente, o estrangeiro; terceiro, aparecerá no relato
de Riobaldo outros estrangeiros como o Seo Assis Wababa, o turco; o alemão Vupes, Rosa’uarda,
sua filha e primeira namorada de Riobaldo e o Salino Curi, o rival para quem Riobaldo perde a
primeira namorada. Riobaldo/ Rosa mostra em sua fala respeito ao estrangeiro quando descreve um
estrangeiro e seu ofício:

Esse era um estranja, alemão, o senhor sabe: clareado, constituído forte, com os olhos
azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar – indivíduo, mesmo. Pessoa boa. Homem
sistemático, salutar na alegria séria. Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí,
e ele não somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio
dele no sertão - que era o de trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas,
debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e
creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava
empreitada de armar. Conservava em si um estatuto tão diverso de proceder, que todos a ele
respeitavam (GSV, 57).

No início da trama, o relato da personagem-narradora nos apresenta Riobaldo-jagunço já
velho, fazendeiro: " Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá
como quem diz: nas escorvas. Ahã” (GSV,08). Neste sentido, a conversa sugere a reflexão e a

38
descoberta da verdade pela mediação de um outro. A obra praticamente não tem fim: é um eterno
retorno; em certo momento, a personagem narradora afirma por três vezes que a história terminou e
continua a narração: "Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”
(GSV, 531). Na última página do romance, ela conversa com o Compadre Quelemém: " Conto o
que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.
(GSV, 538)”.
Esses detalhes, portanto, remetem à simbologia do anel de moebius, figura topológica e
elíptica, que nos impressiona pela perfeição e pelo movimento circular. Na verdade, a narrativa
não aponta nem o começo nem o fim, indicando ao mesmo tempo a totalidade. “A lembrança da
vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os
outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa
importância (GSV, 82)”.
Considera-se o caso do recurso irônico designar a sugestão de dizer. Esse recurso torna-se
benéfico ao receptor, pois contribui para a reflexão diante de situações ambíguas.

2.2 - A PERSONAGEM NARRADORA AMBIVALENTE

O caráter ambivalente da narrativa se apresenta nos aspectos híbridos da personagem
narradora, porque, para ela, o dizer e o desdizer são falas constantes na sustentação do real
ficcional. A insatisfação com o real expressa a busca do homem dividido, que vê a si mesmo e
ao outro, que representa o contrário do modelo. Pode-se perceber o duplo como o deslocamento do
real para outro ponto. Simula-se que nada fosse visto, a partir daí tudo passa a coexistir em
paradoxo. Clément Rosset (1998, 13) afirma que:

Se o real me incomoda e se desejo livrar-me dele, me desembaraçarei de uma maneira
geralmente mais flexível, graças a um modo de recepção do olhar que se situa a meiocaminho entre a admissão e a expulsão pura e simples: que não diz sim nem não à coisa
percebida, ou melhor, diz a ela ao mesmo tempo sim e não. Sim à coisa percebida, não às
conseqüências que normalmente deveriam resultar dela.

A personagem Diadorim, diante do real, só existe para a personagem Riobaldo enquanto
sentimento:

(...) Diadorim era um sentimento meu. (GSV, 272);
(...) Diadorim é a minha neblina. (GSV, 16).

39
Riobaldo vê as coisas a sua volta com exatidão, de modo bem visível, todavia a percepção
dele é duplamente dividida, pois na ilusão a coisa é estabelecida em outro lugar; de um lado, aquilo
que se vê; de outro lado, aquilo que se faz. O acontecimento, extraordinariamente, se apresenta em
dois aspectos que são vivenciados no caráter ambíguo da narrativa. Como a mesma eventualidade
viesse a assumir cada um uma existência autônoma.
A ilusão expressa um engano dos sentidos ou da mente, no entender de Rosset (1998), que
faz com que se tome uma coisa pela outra. É a arte de conhecer com precisão, ignorar as
conseqüências. Um caso passa a ser visto em dois lados contraditórios; uma idéia em duas idéias
distintas, a desagradável e a outra muito diferente. A técnica geral da ilusão é, na verdade,
transformar uma coisa em duas, conta com o mesmo efeito de deslocamento e de duplicação
da parte do assistente: enquanto se ocupa com uma coisa, dirige o seu olhar para outro lugar, para lá
onde nada acontece. O duplo é o dobre fingido, ou seja, a repetição da mesma coisa na narrativa,
ser ao mesmo tempo ela própria e outra:

Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor...
(GSV, 529);
Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos. (GSV, 44).

No romance em questão, Riobaldo representa o homem dividido que a excessiva
racionalização impede de agir. Inúmeras citações expressam que ele está sempre refletindo sobre a
sua condição. A dúvida e a indecisão atingiram o espírito da personagem-protagonista, mesmo
assim, ela se justifica diante do interlocutor.

Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Eu
estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.
Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos,
dar corpo ao suceder. (GSV, 83);
Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém
ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas - e só essas poucas veredas, veredazinhas
(GSV, 84).

A própria personagem tem consciência de sua indecisão, incapacitada de enfrentar os males
do presente e temerosa pelo futuro. A conseqüência disso é o medo causado pela mesma covardia
que atormentou o homem da época barroca, oscilando entre o

desejo de libertação carnal e

espiritual, herança da Renascença e das imposições religiosas e éticas da Contra Reforma Católica.
A personagem Riobaldo concebe o mundo como um cenário de disputa de princípios
opostos como o bem e o mal. Essa visão maniqueísta age na tipificação da personagem Riobaldo
que ora se identifica com um dos princípios ora os renuncia.

40
Riobaldo se vê duplicado e a dualidade o acompanhará ao longo de sua trajetória na busca
de sua identidade. "(...) quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?" (GSV, 272). A personagem
questiona quem é ao contar sua estória de vida: "Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito
diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no meio executando
um erro". (GSV, 314). A personagem Riobaldo conta os fatos mostrando tudo em paradoxo.
Percebe-se que a personagem constrói-se à proporção que sua história é narrada através do
questionamento de seu cotidiano. Nossa personagem viverá seus grandes conflitos num mundo
perigoso. Ela descobre que tudo é e não é. Passa a viver em fronteiras, enigmas, símbolos que são
apenas interpretações individuais. Tanto mais que seus desejos, saudades e lembranças a fazem
pensativa, instala-se a interpretação dúbia, não enxergando nítido.

Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma ( GSV, 329);
Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! (GSV, 26 );
Naquele tempo também, eu não tinha o estrito e precisão nestes assuntos . (GSV, 192);
De Diadorim eu devia de conservar um nojo. De mim, ou dele? (GSV, 276).

A personagem Riobaldo narra para si mesma, para melhor compreender o passado. Percebese que a personagem narradora tenta descobrir o porquê de seus atos e suas decisões. Em seu relato
retrospectivo, tenta explicar sua história e suas experiências de vida. Nota-se o imenso prazer que
ela sente ao narrar e sua preocupação com o receptor expressa desejo que o mesmo permaneça
tempo suficiente para que lhe conte toda história que durará uns três dias.

Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me
espere. (GSV, 124);
(...) é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. (GSV, 171);
Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais
pertença. ( GSV, 84).

No relato de Riobaldo o ato de contar confunde-se com a realidade. A construção da
realidade é vista como a construção da linguagem.

Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.
Fim que foi. (GSV, 531);
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real. (GSV,
530).

A idéia de que “viver é perigoso” denota a ambigüidade desta personagem que conta e
afirma não saber contar.

Sei que estou contando errado, pelos altos. ( GSV, 82);

41
Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. (GSV, 82).

Segundo Galvão (1972), Riobaldo se diferencia dos jagunços porque sonha com uma vida
mais digna, pois é filho de fazendeiro e tem instrução, porém experimenta uma vida que nada tem a
ver com a dele. Riobaldo representava no sertão rosiano o diferente, isto é, o ser que está em
condição de observar em si mesmo os efeitos da alienação, porém consente em subsistir num
mundo definido pela relação com o outro.
Riobaldo se posiciona na margem, não é fazendeiro e tão pouco jagunço. Reside nessa
posição o “perigo de viver”, temática focalizada em uma de suas obras, o conto A terceira margem
do rio. No interior da narrativa, na fazenda do Seo Ornelas, o chefe Riobaldo cobiça a neta do
fazendeiro, mas termina por não querer fazer nada contra a moça e a seu avô, prontificando-se para
ser seu padrinho de casamento.
“— Menina, tu há de ter noivo correto, bem apessoado e trabalhador, quando for hora,
conforme tu merece e eu rendo praça, que votos faço… Não vou estar por aqui, no dia, para
festejar. Mas, em todo tempo, vocês, carecendo, podem mandar chamar minha proteção,
que está prometida” (GSV, 403).

Nota-se nessa citação a mudança de comportamento da personagem, ao tomar essa decisão
ela recebeu influência dos fazendeiros, pois essa conduta não é a de um jagunço nem tão pouco de
um chefe de jagunço, percebe-se nessa postura um ser híbrido, isto é, a personagem mudou de
comportamento em função da descoberta do outro e de outros valores.
O elemento híbrido aparece nesse romance quando o autor registra a ambigüidade na fala
oralizada de um jagunço, isto é, apresenta a linguagem informal em um veículo formal e abre
espaço para a reflexão sobre a variação lingüística e as diversas línguas faladas no Brasil.
Pode-se afirmar que Rosa trabalhou de forma irônica ao produzir essa obra, um texto
complexo em que alguns recursos conduzem os leitores à compreensão, marcando o engajamento
do leitor/produtor, pois ele criou uma obra repleta de ambigüidade: o título, o contexto histórico, o
espaço geográfico, o provável diálogo entre personagem narradora e personagem interlocutora.
Essa duplicidade da personagem pode ser responsável pela dificuldade de ler o romance e
funciona como motivação à reflexão diante de aspectos ambíguos. Assim sendo, Riobaldo interage
com o meio, recebendo influência de outros valores e culturas, daí percebem-se sua mistura, sua
diversidade e seu hibridismo. E, o leitor desse romance, pode vê-lo como o outro por desconhecer
os recursos usados pelo autor nessa criação literária.
Sabe-se que alguns leitores não conseguem dar continuidade à leitura e desistem nas
primeiras páginas, enquanto os que persistem, e tentam desvendá-lo, descobrem sua riqueza e sua

42
força. Isso mostra que se deve dar o devido respeito ao estrangeiro, não se pode rotular de forma
impensada só porque se desconhece a realidade representada. Atualmente, novas identidades
híbridas estão tomando o lugar das identidades nacionais. O hibridismo subverte o conceito de
identidade através da ambivalência criada pela negação, variação, repetição e deslocamento.

43

— Eu era dois, diversos.
Guimarães Rosa

44

CAPÍTULO III

3. A PALAVRA DA PERSONAGEM NARRADORA MULTIFACETADA

O fingimento é o grande articulador da arte de Rosa. A categoria o duplo será apresentada,
neste capítulo, pois Grande Sertão: Veredas se constrói em torno de dois eixos: um que camufla a
encenação no texto e outro que exibe o seu caráter de representação, de artifício. A multiplicidade
funcional pode ser vista como indicativo de que a personagem adquire várias vozes na narrativa.
Por isso, a noção de humorismo de Luigi Pirandello (1996, 169) será utilizada para a leitura da
visão multifacetada da personagem narradora enquanto representação da natureza dividida do
homem.
Guimarães Rosa trama essa tessitura pelas contradições humorísticas. A personagem
narradora não é mais uma, são duas, múltipla. Na fronteira, funde-se fazendeiro e jagunço, o da
chegada com o da partida. Riobaldo se desdobra em outro, torna-se múltiplo. Riobaldo/Rosa une a
voz da personagem narradora-jagunça com a da personagem-narradora-fazendeira criando
oposições; essas vozes existem como dois lados de uma mesma moeda, o encontro de dois mundos
diferentes, o eu e o outro.
A personagem narradora apresenta-se irônica quando evidencia em sua voz a contradição,
afirma que nada sabe e, ao mesmo tempo, expressa prazer nas letras.

Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos (...) Eu
gosto muito é de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a
justo (GSV, 7).
Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado (GSV,7).

Pirandello (op. cit., 163) além de teórico é escritor dramaturgo. Ele trabalha com a face
múltipla do homem: "o homem não tem uma idéia da vida, uma noção absoluta, mas um sentimento
mutável e variado, segundo os tempos, os casos, a sorte". Para ele, o homem é um mascarado
porque se apresenta com duas máscaras discrepantes, a interior e a exterior.

Observa-se a

contradição entre o que se diz e o que se quer que seja entendido nas ironias, ou seja, as imagens
duplas que possibilitam dizer o sim no não. Na matéria humorística as simulações e as ficções
apresentam-se como sentimento contraditório. Pirandello (op. oit., 169) diz:
O humorismo consiste no sentimento do contrário, provocado pela especial atividade da
reflexão que não se esconde, que não se torna, como comumente na arte, uma forma do
sentimento, mas o seu contrário, mesmo seguindo passo a passo o sentimento como a

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sombra segue o corpo. O artista comum cuida do corpo somente: o humorista cuida do
corpo e da sombra, e às vezes mais da sombra do que do corpo; repara em todos os
contornos desta sombra, como ela ora se alonga e ora se alarga, quase fazendo as
contrações do corpo que, entretanto, não calcula e não se preocupa com ela.

Para Pirandello (op. cit., 159), o humorismo é um fenômeno literário antigo que expressa a
natureza dividida do homem moderno. O caráter humorístico pode ser visto como recurso do ato
construtivo que exige reflexão do leitor.

A sua vida é equilíbrio móvel; é um ressurgir e um aquietar-se contínuo de afetos,
tendências, idéias; um flutuar incessante entre termos contraditórios, e um oscilar entre
pólos opostos, como a esperança e o medo, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e
o injusto, e assim por diante.

Pirandello (op. cit.) elaborou as principais chaves de sua poética atentando para a
representação de pessoa como persona, isto é, como máscara de si mesma, como forma que define a
sua personagem no jogo do ser-se não sendo; a identidade é ao mesmo tempo o velar-se da ficção
para o revelar-se do real no irreal. Desta forma, o referido crítico (op. cit., 158) flagra a
ambigüidade e a ambivalência na representação.

Vive na nossa alma a alma da raça, ou da coletividade da qual somos parte; e a pressão de
outro modo de julgar, de outro modo de sentir e agir, é outra vez sentida por nós
inconscientemente: e como no mundo social dominamos a simulação e a dissimulação,
tanto menos lembradas quanto mais são tornadas habituais, assim simulamos e
dissimulamos conosco mesmo, desdobrando-nos e também com freqüência multiplicandonos. Nós mesmos sentimos a vaidade de se parecer diferente do que se é, que é uma forma
consubstanciada na vida social; e fugimos daquela análise que, desvelando a vaidade,
excitaria o peso da consciência e humilhar-nos-ia diante de nós mesmos.

A narração em Grande Sertão: Veredas inicia-se com Riobaldo já velho, fazendeiro
residente na região do rio São Francisco. "Agora, eu velho, vejo: quando cogito, quando relembro,
conheço que naquele tempo eu girava leve demais, e assoprado" (GSV, 444). A partir da
retrospectiva de sua vida, vêem-se as mudanças que ela sofreu na travessia de jagunço a fazendeiro.
A personagem narradora rememora o passado, por isso se volta para a época que encontra o
Menino. Em que movida pela influência desse amigo, torna-se um jagunço e passa a viver em
constante guerra consigo mesma. "De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar,
cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado.
Assim eu acho, assim é que eu conto” (GSV, 82).
A fala do fazendeiro representa um momento vivido diferente da fala de outrora quando
vivia no jaguncismo. Quando ele era jagunço cometia delitos, naquele momento, padecia de

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consciência atormentada pelos erros cometidos no passado. Neste estágio focaliza-se a fala de um
homem racional, um ser pensante que reflete sobre seus atos e o curso de sua vida.
Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos. (GSV, 16).
Tempos foram, os costumes demudaram. (GSV, 17).

Numa parte da história, a narrativa continua linearmente, uma biografia sucinta: aos 14
anos, a personagem Riobaldo encontra o Menino..., é notável a criação rosiana ao descrever o
menino com feições femininas. O reencontro com o Menino adulto é responsável pela opção de
viver no jaguncismo. “Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido para o meu
amor o amor de Otacília. Otacília quando eu pensava nela, era mesmo como estivesse escrevendo
uma carta” (GSV, 376). Nosso herói apresenta-se dividido entre dois amores: Diadorim e Otacília.
A opção por um amor representava também a escolha de um modo distinto de viver: a primeira, a
vida jagunça e, a segunda, a pacata vida na fazenda. O desejo expresso para terminar seus últimos
dias ao lado de Otacília representa a aspiração desse jagunço de se tornar um fazendeiro: “Saio
daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília! – eu jurei, do proposto de
meus todos sofrimentos” (GSV, 41).
Riobaldo vive entre extremos; embora não aceite sua posição na sociedade, defende sua
dignidade enquanto jagunço. Ele vive em dilemas provocados pelo choque de valores: a descoberta
da verdade para o homem que segue o caminho mais estreito difere do que segue o caminho mais
largo. Por isso, a emergência do saber se efetiva na aflição da personagem protagonista à procura de
respostas para suas inquietações.

(...) que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa vivere essa pauta cada um tem- mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é
que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? (...) E procurar encontrar aquele
caminho certo eu quis, forcejei, só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha
mão. Mas minha alma tem que ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? (GSV,
427).

Nesta citação pode-se ver a apropriação do discurso da tradição judaico-cristã pela
personagem narradora que ao falar de caminho estreito sugere a fala de Jesus registrada na Bíblia 1,
quando afirma que poucos entrarão por ele, caminho estreito é o que conduz a vida eterna.
Como a personagem Riobaldo encontrava-se no entre-lugar, ela cometia crimes contra seu
desejo, mas não tinha prazer nessa maneira de viver. Ela diz que “não pertencia a razão nenhuma,
1

"Mas estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela. Mateus:
7,14"

47
não guardava fé e nem fazia parte”,

talvez, a insatisfação dela resulte da consciência e da

responsabilidade de ser outro “Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum
riacho, vestir terno novo sair de tudo o que eu era para entrar num destino melhor” (GSV, 277).
Riobaldo se distingue dos outros jagunços porque questiona seus direitos e luta em busca de um
ideal.

Eu sou é eu mesmo. Divirjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de
muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar ligeiro, sou cão mestre - o senhor
solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rasteio essa por fundo de todos os matos,
amém! (GSV, 08 ).

Dois grupos ocupam o espaço sertanejo. Duas formas de viver: de um lado, os fazendeiros e
seus agregados, que representam a civilização, fixam e estabelecem leis que garantem a ordem e
a sociabilidade; são grupos sem articulação devido à distância de uma fazenda para outra. Riobaldo
se depara com vários fazendeiros: seu Ornelas, fazendeiro envolvido com a lavoura, pecuária e
política, ex-jagunço e amigo de Medeiros Vaz,

desliga-se do jaguncismo chegando a ignorar a

existência de Zé Bebelo; Seu Habão homem ambicioso, preocupado apenas com a acumulação de
bens, mostra interesse pelos jagunços com o intuito de escravizá-los no trabalho braçal. Possuindo
um modo de viver distinto dos jagunços, estes fazendeiros prezam pela preservação das normas.

__ Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias.
A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas,
adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador_ todos donos de
agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! (...) Nisto que na
extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça pau-de-fogo
e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse
São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral,
seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, Januária, Carinhanha, Urubu,
Pilão Arcado, Xiquexique e Sento-Sé. (GSV, 94).

De outro lado, o jagunço, o cabra, o bandoleiro eram deslocados da civilização. O
reacionário foge das normas de uma sociedade, pois eles representavam um grupo armado a serviço
de senhores em oposição ao governo da época. Arranchando em qualquer lugar, eles não se
enquadram no sistema dos fazendeiros, partilham a condição jagunça, potencial de força
manipulada por outrem para o exercício do poder. "Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi
que foi o jagunço Riobaldo" (GSV, 272). Assassinar, estuprar, torturar são ofícios dos jagunços.
Para o trabalho ou para a destruição, o jagunço deve manter a ordem e ao mesmo tempo ameaçá-la.
Impondo sua lei e transgredindo-a, vingar as ofensas assim como praticá-las, são seus lemas. As

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razões que fazem sua atuação num ou noutro sentido independem de sua escolha. O senhor é quem
ordena, o jagunço executa. Às indagações de Riobaldo, Jõe Bexiguento, um jagunço qualquer,
responde com seu “Uai?! Nós vive…; porque: duro homem jagunço, como ele no cerne era, a idéia
dele era curta, não variava” (GSV, 191- 192 ). (grifos meus).
A grande diferença entre qualquer jagunço e o jagunço Riobaldo é que ele só é um meiojagunço; sua carreira toda está perturbada pelas normas do mundo letrado. É o homem em constante
conflito com o meio, que caminha em direção oposta analisando a realidade de forma dúbia. É
notória a racionalização dessa personagem e a narrativa consiste na rememoração dos fatos como
recurso para reviver o vivido.

Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era
porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo
gente, na constante brutalidade. (GSV, 115).
(...) que a função do jagunço não tem seu que, nem p’ra que. (...) Tudo agora reluzia com
clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava
lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que
fosse por minha própria vontade. (GSV, 373)

Em Grande Sertão: Veredas a personagem é fragmentada, ela exerce várias funções no
contexto. Como ator múltiplo executa as funções de aluno, professor e contador de histórias. A
fragmentação dessa personagem sugere que o homem moderno é um indivíduo contraditório e
emotivo, todavia, sabe conhecer objetivamente; calculista, porém, angustiado; violento e terno;
ama e odeia, vive entre o real e o imaginário. Portanto, essa personagem atua em diversos papéis
exercendo diversas funções que apontam o caráter uno do múltiplo. A fala do aluno e do professor
nos apresenta uma faceta em que se percebe traços de aprendizagem.

3.1. A PALAVRA DO ALUNO E DO PROFESSOR
Na palavra do aluno e do professor, observa-se a sensibilidade do ser humano através da
descrição de momentos lúdico, afetivo e poético.

O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da
madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Are, me adoçou
tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão. (...)
Pois foi – que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e
meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas (GSV, 103).

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Na citação acima, a personagem-narradora se apresenta como compositor quando mostra o
motivo das composições e dos momentos que ecoam sons poéticos e musicais, momentos de
tristeza, saudade e decepção amorosa.

Olererêêê, baiana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu faço
que vou lá dentro, oh baiana
E volto
do meio
pr’a trás...(GSV, 152).

Em outro momento, Riobaldo protagonista, no bando de jagunços, aponta características da
riobaldança, ou seja, expressa as principais antíteses presentes na narrativa

Grande Sertão:

Veredas. A letra da música é mais um índice da ambigüidade presente na descrição da personagem
protagonista.

Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe:
eu careço de que bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os
todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio
de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é
muito misturado… (GSV, 191-192).

Em seu relato, ao tecer comentários sobre a alta instrução do visitante, o próprio
Riobaldo/Rosa nos diz que alimentara sua sensibilidade apesar de ser jagunço. A experiência de
leitura do romance Senclér das Ilhas para ela é rica, o primeiro romance, após a leitura exclama
“nele achei outras verdades, muito extraordinárias” (GSV, 333).
Chiappini (1997) concorda com Galvão (1972) quando afirma que Riobaldo é homem de
letras no meio dos jagunços. A personagem Riobaldo sabe ler e escrever, pois aprendeu um ano e
meio de cartilha, memória e palmatória. Sabe as quatro operações, a regra de três, estudou
gramática e estudo pátrio, lia almanaque, escrevia poemas, foi professor e secretário.
Riobaldo exerceu a função de professor. Desde a época de estudo em Curralinho, ele se
destacava no grupo; no segundo ano, foi indicado para a monitoria. Tanto era seu destaque que seu
professor, Mestre Lucas, certa feita havia reconhecido seu mérito. "Mas o mais certo de tudo é que
um professor de mão-cheia você dava…" (GSV, 96).
A relação professor/aluno é um fato que pode merecer reflexão, pois a lembrança do aluno
Zé Bebelo constitui-se em uma das lembranças mais agradáveis da personagem protagonista: "Para
Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta

50
vida que eu mais prezei e apreciei" (GSV, 64). Desde o primeiro encontro entre professor e aluno,
este se destaca na sua maneira de ser. Educado e gentil, o aluno demonstra em suas atitudes respeito
e admiração pela figura do professor Riobaldo.

Mas ele veio para mim, então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu
disse: - 'Sou o moço professor…' A alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou
do braço, com porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para o quarto,
lá dentro, ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos. (GSV, 109).

A surpresa para o professor Riobaldo foi tremenda, pensava que ia ministrar aulas para os
filhos dos fazendeiros, descobre que teria apenas um aluno especial, o chefe dos republicanos.
Ah, mas, ah — esse quem era — o homem Zé Bebelo. A face de fato, tudo nele para
mim, tirava mais para fora uma real novidade (...) Estudante sendo ele mesmo. Me avisou.
Quis antever os cadernos, livros, pegar com as mãos. Assim ler e escrever, e as quatro
contas, ele já soubesse, consumia jornais. (GSV, 109).

Nota-se a curiosidade e a alegria do aluno diante do material de estudo. Zé Bebelo, enquanto
manuseava os livros, assobiava e cantarolava. Esta característica de Zé Bebelo é lembrada por
Riobaldo em outro momento. "E, homem feliz, feito Zé Bebelo naquele tempo afirmo ao senhor ,
nunca não vi" (GSV, 78). Apesar do interesse demonstrado pelo estudo, o profissional professor
seria um segredo entre eles, devido ao cargo que o aluno ocupava; fizeram um acordo, para os
outros ele seria seu secretário.

Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem me exercitou tanto, eh, ô, fim fiz.
Ânsia assim e anta, e poder de entender demais, nunca achei quem outro. O que ele queria
era botar na cabeça duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a inteligência! Vorava.
Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava,parecia ter até raiva de eu
saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra fim. Queimava por noite,
duas, três velas (GSV, 109).

Em pouco tempo de estudo, o aluno supera o professor, de aluno-receptor de conhecimentos,
Zé Bebelo passou a trocar conhecimentos com o professor e finalmente corrigi-lo, confirmando o
chiste "mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (GSV, 271). Percebe-se
nessa figura mais um recurso irônico utilizado pelo escritor. Sabe-se que o conhecimento constróise ao longo da vida, entretanto, em menos de um mês, o aluno aparece como o detentor do
conhecimento enquanto o professor desconhece a lição e é motivo de riso.

51
Sobrevinha com o livro, me fazia de queima - cara um punhado de perguntas. Ao tanto eu
demorava, treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai - ai- ai d'ele atalhar as
minhas palavras, mostrar no livro que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quinau (GSV,
110).

Observa-se a felicidade do aluno que reteve o conhecimento diante do professor em
dificuldade. "Se espocava às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas, próprias de sua
idéia lá dele - e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu já ignorante, esmorecido e
escabreado" (GSV, 110). Entretanto, neste momento, passa a admirar mais o professor. "Só aí, digo,
foi que ele ficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, me gratificou em dinheiro me fez
firmes elogios — Siô Baldo, já tomei os altos de tudo!" (GSV,110).
Daquele momento, restava a Riobaldo exercer a função de secretário, todavia, ele foge e
vai ao encontro do bando dos ramiros, os inimigos do ex-aluno e passa a lutar contra os
republicanos, Zé Bebelo seu ex-aluno. Os ramiros conseguem prender o chefe republicano. Diante
do reconhecimento, professor e aluno se reverberam. “— Professor, ara viva! Sempre a gente tem
de se avistar… (...) Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso (GSV, 73 e
74)”. Em outro momento, no julgamento de Zé Bebelo, Riobaldo defende o ex-aluno diante de
todos e contribui para sua absolvição.

__ Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não
estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com
as ordens destes famosos chefes, vós… Da banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal,
com meu cano e meu gatilho… Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem,
e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter
ruindades em cabimento, nem matar inimigos que prende, nem consentir, de com eles se
judiar… Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido
escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa… E isto digo, porque de dizer eu
tinha, como dever que sei, e cumprindo a licença dada por meu grandechefe nosso, Joca
Ramiro, e por meu cabo chefe Titão Passos! (GSV, 238 - 239).

No julgamento, Zé Bebelo foi absolvido com a condição de só voltar para o sertão após a
morte do grande chefe Joca Ramiro. Tempos depois acontece o assassinato de Joca Ramiro e
quando menos se espera reaparece Zé Bebelo com seus homens para vingar a morte do chefe, seu
amigo. Ele fica entre os ramiros e por unanimidade os jagunços o elegem chefe dos ramiros.
Outrora Riobaldo-Tatarana houvera recusado a chefia, porém, o tempo passou e a postura de
Riobaldo muda, passando a desejar o cargo de chefe; começa a dar sinais de seu interesse quando
critica e imita Zé Bebelo. "Só duma coisa eu forte sabia… Só que eu ia vigiar sempre Zé Bebelo.
Ele trair, vivo,

eu não deixava.

Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza - que servia ou

atraiçoava?" (GSV, 304).
Riobaldo enfrenta Zé Bebelo sem medo e toma a chefia do bando. A partir daí se separam.

52
Após a luta final, Riobaldo entristecido o reencontra. "Zé Bebelo gritou: - ‘Safa, safas!…’ - e me
abraçou como amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso
costume. Conto que estava o mesmo, aposto e condizente." (GSV, 536). Riobaldo, com grande
satisfação, passou três dias na companhia do amigo Zé Bebelo.
Além da palavra do aluno e do professor, aparece no contexto a palavra do contador de
histórias. Essa fala lembra o escritor, devido às inúmeras histórias que ele inseriu na narrativa e a
opção pela oralidade como recurso de escrita.

3.2 - A PALAVRA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS
Observa-se que a personagem-narradora apresenta-se como um contador de histórias. Tal
qual Sherazade, Riobaldo

envolve os interlocutores em suas aventuras. A personagem havia

narrado essa história outras vezes a outros interlocutores. A primeira referência é a um senhor, o
forasteiro “o senhor”; a segunda, é a um jovem.

Que tal o que o senhor acha? Pois mire e veja, isto mesmo narrei a um rapaz de cidade
grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o
que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma história em livro. Mas
que precisava de um final sustante, caprichado. (GSV, 70).

A terceira, refere-se ao "compadre meu Quelémem me hospedou, deixou meu contar
minha história inteira“ [sic] (GSV, 538).
Entre outras histórias menores que se interpenetram no relato, destaca-se a história de Maria
Mutema. A partir de uma confissão de Riobaldo, a narrativa passa a representar a fala de Jõe
Bexiguento, o jagunço, que lhe narra a história de Maria Mutema, uma mulher discriminada que
ocupava um espaço de silêncio pela própria falta de conhecimento, pois não entendia o porquê da
crise enfrentada. “Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração”
(GSV, 192). Esse conto, inserido na obra Grande Sertão: Veredas aborda, a temática da loucura
feminina também expressa no conto "Soroco, sua mãe, sua filha", registrado em Primeiras Estórias.
A personagem Mutema é marcada pela loucura e, tal qual Cláudio, em Hamlet, que pingara gotas
de um veneno mortífero nos ouvidos de seu irmão, Mutema derrama chumbo derretido no ouvido
do esposo enquanto dorme.
Nessa história transparece a discriminação sofrida pela mulher em uma sociedade machista
que a relega à condição da aceitação; enquanto masculino apresenta-se ligado às formas do
público, do racional, do científico e da objetividade.

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Nesse âmbito, a fala escrita em primeira pessoa, as perguntas e as respostas provindas de
uma mesma personagem podem, por tudo que representam no universo romanesco, traduzir um
tipo de confissão. Parece-nos que o autor inseriu o conto menor – Maria Mutema - como um
pretexto para identificar o assunto retratado na obra, isto é, mais um recurso usado para facilitar a
compreensão durante a leitura. Observam-se coincidências significativas entre a confissão maior
(Riobaldo) e a menor (Mutema): o viver atormentado e a necessidade de falar sobre o assunto.
Guimarães Rosa tece a narrativa dialogando com o leitor, e leva-o a reflexão com suas
histórias. Esse conto é humorístico, a dramatização entre Riobaldo - que ouve o conto e RiobaldoJõe - que narra, dá o que pensar. Riobaldo-Jõe conta para Riobaldo-jagunço para que este reflita e
entenda melhor a vida. Duas vozes que representam a contradição interagem enriquecendo uma a
outra com suas histórias.
Segundo Pirandello (1996), não existem definições claras e exatas de fácil compreensão para
definir humorismo,

pois não se devem ser usadas as características conhecidas, mas somente a

união de todas elas, e mesmo assim a definição não seria satisfatória. A principal característica do
humorismo é a contradição, a arte de juntar os opostos em um procedimento analítico.
A oralidade rosiana expressa a contradição através da ambivalência, da dualidade e do
hibridismo da personagem narradora Riobaldo. Na combinação de vozes divergentes, Rosa tece a
narrativa entre o eu e o outro.
O humorismo é um processo analítico e a diferença entre humor e cômico é o sentimento do
contrário. A análise de uma situação trágica que parece engraçada, pode-nos levar ao riso, mas não
da mesma maneira. O cômico é apenas uma advertência do contrário, algo que está fora dos padrões
da norma humana, como a fala da personagem Riobaldo, que não obedece às regras gramaticais.
Não faz parte da norma, por isso rimos, é um fato cômico e pode ser humorístico, se analisado.
Através do cômico, pode-se chegar ao humor, quando uma situação é trágica mas parece
engraçada, só que esse aspecto final é apagado, como se o riso fosse bloqueado. No caso de
Riobaldo parece fundir o eu e o outro, personagem narradora/ personagem interlocutora.
Aparentemente, a situação de Riobaldo pode provocar riso, entretanto o lugar de Riobaldo-jagunço
é de fronteira. Pode-se dizer que conhecedor de duas realidades, ele tenta expressar o pensamento
do outro.
O humorismo revela como as aparências enganam. As diferenças do interior de cada um de
nós, mentimos psicologicamente, ou seja, para nós mesmos assim como mentimos socialmente, a
alma que se comporta assim é solitária mas os fingimentos e as dissimulações as caracterizam. O
humorismo desmascara a sociedade quando representa as duas faces, a interior e a exterior do
indivíduo.

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O escritor, ao criar uma personagem, utiliza duas características opostas numa mesma
pessoa e, dessa forma, faz com que cada ato vivido pela personagem seja coerente; o humorista faz
o inverso, decompõe o caráter de seus elementos enquanto a narrativa tenta torná-lo coerente, a
diversão vem da representação de suas inconveniências. O humorista sabe que a vida real é cheia de
contradições diversas das concepções ideais da vida dos escritores comuns. Nesse sentido, pode-se
dizer que Rosa montou um texto humorístico quando representou a natureza fragmentada do
homem moderno.
É esse sentimento do contrário devido à atividade da reflexão que não

se torna um

sentimento mas o seu contrário, mesmo seguindo este primeiro sentimento. O humorista dá valor ao
abstrato, ao interior, mas sempre representando o contrário do que se vê. Para Becker ( 1961,17 ),
“O humor é o único meio de não sermos tomados a sério, mesmo quando dizemos coisas sérias: que
é o ideal do escritor.”
Apesar do discurso humorístico procurar mostrar a realidade, ele faz isso de uma forma
livre, deixa as pessoas relaxarem não a ponto de rir, porém faz refletir sobre o fato vivido. No texto
humorístico, o sujeito possui a ilusão que domina o discurso, no entanto o discurso é que o domina
e esse discurso possibilita reflexões acerca do próprio processo discursivo. É possível perceber
nestes discursos a presença da subjetividade.
O humor evidencia o lado intelectual do escritor que produz seu texto sempre de forma
reflexiva, mistura opostos, como o passado e o futuro, não repetindo o já conhecido e renova as
regras sem medo de ser criticado. O riso é um exemplo de subversão dos padrões, é inclusive uma
crítica social. Geralmente as atitudes cômicas são retiradas do erro ou melhor do comportamento
que é contrário às regras humanas. Por isso, na sociedade dos fazendeiros, o jagunço pode ser
motivo de riso, por sua “inferioridade” além de seu comportamento que destoa daquilo que é
normal naquele meio social.
Rosa montou Grande Sertão: Veredas pelo livre movimento da vida interior que organiza
idéias e as imagens em uma forma harmoniosa, na qual todos os elementos correspondem entre si a
idéia –mãe, que as coordena. Na criação rosiana, identificou-se a oralidade como um recurso de
escrita que pode ser pensado como a provável chave para abrir a porta de acesso à compreensão
dessa obra. Essa narrativa é oralizada na voz de um fazendeiro que rememora os acontecimentos
passados, buscando a compreensão dos fatos ocorridos. À proporção que ele conta a história, fundese o tempo passado ao futuro. O hibridismo cultural aparece quando o autor constrói o texto com a
presença do interlocutor, um outro da personagem narradora que ao narrar, mistura-se a esse outro
fundindo valores diferentes. Pela via do humor, o autor adentra quando a palavra multifacetada da
personagem narradora se desdobra na fala do aluno, do professor e do contador de histórias.

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Sabe-se que o cômico antigo difere do moderno, existem, dessa forma, duas maneiras de se
fazer rir. Interessa-nos o cômico moderno porque ele difere da noção tradicional de cômico, que era
pensado como o que provocava riso. O cômico moderno é visto como uma sombra, um espírito, um
vento, um sopro, um fumo, faz apenas sentir o gosto, é fugaz. Em palavras genérica e sumariamente
falando, nasce de uma composição de vozes, de um equívoco, de uma alusão com palavras, de um
joguinho de palavras, exatamente daquela palavra, de maneira que retiradas as alusões,
descompostas e ordenadas diferentemente as palavras, dissolvido o equívoco, substituída uma
palavra por outra, esvanece-se o ridículo. Pirandello (op. cit, 34) diferencia um do outro quando
afirma:

O moderno era uma sombra, um espírito, um vento, um sopro, fumo. Aquele enchia de
riso, este apenas nos faz apenas sentir o gosto; aquele era sólido, este fugaz; aquele
consistia em imagens, similitudes, comparações, histórias, em suma, coisas ridículas; este,
em palavras, genérica e sumariamente falando e nasce de uma alusão com palavras de um
joguinho de palavras, exatamente daquela palavra, de maneira que, retiradas das alusões,
descompostas e ordenadas diferentemente as palavras, dissolvido o equívoco, substituída
uma palavra por outra, esvanece-se o ridículo.

A forma da criação literária, isto é, o trabalho estético rosiano fala por si mesmo, ajudando
os leitores a descobrirem a sua força e a estratégia de construção narrativa, via oralidade, de um
narrador que lida de forma magistral com sua duplicidade. Camadas de vozes são ouvidas nessa
narrativa. Os leitores que persistem nessa leitura refletem sobre várias situações e experimentam o
lugar de cada personagem, bom

ou mau, confortável ou desconfortável, ele pode se colocar em

cada lugar na dialética rosiana.
As vozes que dão tom à narrativa rosiana sustentam a trajetória da personagem Riobaldo,
que produz seu pensamento nas palavras do professor, do aluno e do contador de histórias.
Evidencia-se, portanto, nessa combinação de vozes, uma proposta de criação do escritor: cultuar o
texto, fazer viver a palavra. "Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro.
Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim?” (GSV, 538). O autor registra o confronto
em dois espíritos, isto é, faz humor, pois a confusão é notória, tudo está suspenso entre o sim e o
não enquanto a personagem narradora diverte-se com algo que a entristece.

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CONCLUSÃO
A existência de um memorial que reúne matérias sobre João Guimarães Rosa não esgotou
possibilidades de

estudos, nem tão pouco o

percurso traçado pretendeu-se

definitivo, ao

contrário, espera-se que as idéias esboçadas possam trazer á memória outros temas.
A palavra da personagem narradora Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa foi nosso objeto de estudo. Pretendeu-se mostrar os recursos selecionados pelo
autor para a montagem da narrativa com a finalidade de desvendar o mistério envolto da leitura que
para alguns leitores torna-se prazerosa e para outros dificultosa a tal ponto que desistem nas
primeiras páginas.
Apresentou-se indícios que comprovam a necessidade de usufruir-se dessa leitura. De um
lado, a riqueza literária da obra, no tocante ao aspecto objeto da minha análise, levou-nos às
escolhas diante do processo narrativo; por outro lado, reverte-se em dificuldades do leitor enquanto
receptor do texto rosiano, uma vez que "o alto teor poético da obra rosiana, onde a expressão
pessoal corre livre, forjando o seu próprio código enquanto utiliza, resulta num discurso opaco, que
às vezes chega a desnortear o leitor" (LEÃO: 1998, 26).
Focalizou-se o aspecto metalingüístico, isto é, a presença de uma reflexão sobre a arte de
narrar e compreender a leitura do romance, fez-nos empreender esse aspecto

como uma

contribuição do uso da palavra e seus desdobramentos na formação de bons leitores, que "é
assumida de forma voluntária e lúdica por Guimarães Rosa, que, à maneira de uma esfinge, desafia
o leitor, não para devorá-lo, mas para melhor o seduzir e prender" (LEÃO: 1998, 26). Nesse âmbito,
há uma reflexão sobre a obra literária que se apresenta como uma leitura prazerosa, produtiva e útil.
Identificou-se a oralidade como um recurso de escrita que pode ser visto como a provável
chave para abrir a porta de acesso à compreensão dessa obra. Essa narrativa é oralizada na voz de
um fazendeiro que rememora os acontecimentos passados buscando a compreensão dos fatos
ocorridos. À proporção que ele conta a história, funde-se o tempo passado ao futuro. O hibridismo
cultural aparece quando o autor constrói o texto com a presença do interlocutor, um outro da
personagem narradora que ao narrar, mistura-se a esse outro fundindo valores diferentes. Pela via
do humor, o autor adentra quando a palavra multifacetada da personagem narradora se desdobra na
fala do aluno, do professor e do contador de histórias.
A forma da criação literária, isto é, o trabalho estético rosiana fala por si mesmo, ajudando
os leitores a descobrirem a sua força e a estratégia de construção narrativa, via oralidade, de um
narrador que lida de forma magistral com sua duplicidade. Camadas de vozes são ouvidas nessa

57
narrativa. Deve-se levar em consideração que o texto literário é um texto com brechas – onde as
vozes se entrecruzam -, no sentido de Barthes, necessita que os leitores preencham os espaços
vazios. Pode-se afirmar que o autor trabalhou de forma irônica ao produzir a obra, um texto
complexo em que alguns recursos conduzem os leitores à compreensão, marcando o engajamento
do leitor/produtor, pois Rosa criou uma obra repleta de

ambigüidade:

o título, o contexto

histórico, o espaço geográfico, o provável diálogo entre personagem narradora e personagem
interlocutora
Portanto, esse texto é um desafio ao leitor que, envolvido pelas possibilidades criativas do
autor, é levado a pensar e a questionar a realidade em que vive, tentando (re)descobrir enigmas e
(re)encontrar respostas para várias inquietações.

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